quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Roberto Carlos é uma espécie de guaraná, diz Caetano Veloso

Roberto Carlos é uma espécie de guaraná. A metáfora de Caetano Veloso, em resposta a um crítico que falara em laranjada, reveste o artista mais popular da música brasileira de um atributo que, embora central em sua vida e obra, lhe tentaram frequente e indevidamente confiscar: a brasilidade.

É fácil entender por que a crítica mais nacionalista hesita em considerá-lo genuinamente brasileiro. Afinal, Roberto Carlos nunca demonstrou maior apreço pelas raízes e tradições culturais do país: do rock ao fox, sempre preferiu gêneros originalmente americanos. Mas também não é difícil argumentar o contrário: o que seria genuinamente brasileiro se até o samba, brasileiro por excelência, não dispensa o pandeiro, de origem árabe, e a cuíca, provavelmente trazida da África? O fato é que pela porta estreita do nacionalismo não passaria nem a bossa nova, que tem lá sua dívida com a harmonia do jazz.

Esse debate, que será deixado para musicólogos, apenas tangencia a importância da brasilidade de Roberto Carlos. Em sua essência, mais que um artista brasileiro, Roberto Carlos é uma expressão do Brasil. Não vai aqui nenhum juízo de valor: pode-se gostar ou não dessa expressão que ele representa. Certa vez, nos anos 90, um crítico afirmou: "Ele é a cara do Brasil: uma porcaria".

Não é preciso gostar de Roberto Carlos para reconhecer que ele é a cara do Brasil. Nem se trata apenas da questão musical. Para o escritor Affonso Romano de Sant'Anna, seria um erro analisar a qualidade poética de Roberto Carlos sem levar em conta a totalidade do fenômeno. "O significado de Roberto Carlos dentro do cotidiano brasileiro faz com que gostemos dele independentemente de um julgamento literário sobre a sua produção".

Na raiz dessa atitude está o carisma excepcional de Roberto Carlos. Carisma não se explica, claro, mas pode ser dimensionado. Talvez valha citar, pelo simbolismo que encerra, o fato de que não há na história da música brasileira notícia de outro cantor que tenha dado nome a dois jogadores da seleção: o lateral-esquerdo Roberto Carlos e o zagueiro Odvan, assim batizado por causa da música "O Divã".

É esse, no limite, o espaço que Roberto Carlos ocupa no imaginário popular: o espaço do mito. Ele não foi o primeiro grande ídolo da música brasileira - Orlando Silva (1915-78), a seu tempo, desfrutou igualmente de enorme popularidade. Mas foi o primeiro a atuar num ambiente dominado pela cultura de massa, que surgiu com o fortalecimento da televisão e do mercado de consumo, especialmente o segmentado para jovens. É pertinente, portanto, que Caetano tenha se referido ao refrigerante industrializado, não à fruta.

A cultura de massa impõe o gosto médio, e Roberto Carlos não ficou imune a essa tirania. Mas não foi apenas um movimento de cima para baixo. Em sentido contrário, com a pressão derivada de seu próprio talento musical, Roberto Carlos ajudou a formar o gosto médio do brasileiro, modernizando-o.

É claro que, em arte, sempre se pode argumentar que até o mau gosto é preferível ao gosto médio. Mas o mau gosto, assim como o seu contrário, está restrito às esferas da cultura popular ou da alta cultura; nessas, a maior liberdade conduz ao acerto ou ao erro, sem que isso tenha implicações além do âmbito artístico. Na cultura de massa, porém, o que se busca é algo com potencial para agradar ao maior número possível de pessoas. Essa é a regra do jogo que Roberto Carlos sempre jogou - e é dessa perspectiva que deve ser avaliado.

Qual, então, a avaliação? É de Sant'Anna a melhor síntese de Roberto Carlos: "Ele é o lado kitsch dos ouvintes mais sofisticados e é o lado mais sofisticado dos ouvintes mais kitsch. É uma espécie de herói popular". Já para Chico Buarque, "Roberto é o mais moderno dos cantores românticos latinos".Na realidade, como talvez nenhum outro artista, Roberto Carlos é capaz de conciliar quantidade e qualidade, atravessando com desenvoltura a ponte que liga o Guinness ao Grammy.

Como se explica tal prodígio? O que o diferencia? Talvez a competência para operar nas dobras de um sistema que ele não questiona. Sem nunca ter quebrado as regras do jogo, Roberto Carlos testou limites, criou um espaço próprio e impôs sua vontade, contribuindo para, apesar das repetições, ou por causa delas, apurar o gosto musical do brasileiro. Com sua incrível habilidade para se comunicar com o homem da rua, transformou-se naquilo que sempre foi: um gênio da praça.

Este é um ensaio musical-biográfico. Interessam aqui as histórias que entraram na música - e as músicas que entraram para a história.

Roberto Carlos quase nunca escreveu músicas de teor político. (Talvez a única exceção seja "Verde e Amarelo", para saudar a Nova República em 1985.) E, no entanto, é possível, a partir de suas canções, montar trilhas sonoras para 50 anos de história do Brasil. Para mencionar um único exemplo, "Eu Sou Terrível", sucesso da "Jovem Guarda", acabaria associada ao filme O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), de Cao Hamburger, que tem como pano de fundo a luta armada dos anos 70.

O auge de Roberto Carlos, aliás, coincide com a ditadura militar. Não há relação entre uma coisa e outra - e isso precisa ser dito com todas as letras porque o cantor enfrenta críticas pela atitude conformista desde os tempos do iê-iê-iê. Mas é um fato: seu primeiro grande sucesso, "O Calhambeque", data de 1964, e um dos últimos da fase áurea, "Caminhoneiro", de 1984.

Antes de 1964, Roberto Carlos era apenas um jovem promissor em formação. Esse é o assunto do primeiro capítulo, que começa em Cachoeiro de Itapemirim, onde o menino Zunga tem lições de música e vida que jamais esquecerá. O capítulo seguinte trata da "Jovem Guarda". É nessa fase que gostar de Roberto Carlos era, para os que se sentiam patrulhados, um "vício secreto", como diz Nelson Motta. O terceiro capítulo aborda aquele que talvez seja o melhor Roberto Carlos: o compositor inspirado e o intérprete perfeccionista, que faz a passagem do soul para as baladas românticas dos anos 70.

Haveria, mais adiante, um declínio na produção musical de Roberto Carlos, algo de que se fala no capítulo 4. O período se inicia com uma polêmica da qual ele sai desgastado, ao apoiar a censura ao filme Je Vous Salue, Marie, em 1986. Mas essa é também a fase em que o cantor se supera, e, nos shows, amparado pelo repertório dos anos anteriores, sustenta o sucesso de uma carreira que o levou a vender mais de 100 milhões de álbuns no mundo todo, o único latino a atingir tal marca.

O último capítulo pode ser lido como um guia da recepção de Roberto Carlos por novos intérpretes e jovens roqueiros. A geração Coca-Cola de que falava Renato Russo entrava em campo para reverenciar o rei, aquela espécie de guaraná. Isso é que é.


Fonte: PILAGALLO, Oscar. Apresentação. In: ─ . Roberto Carlos. São Paulo: Publifolha, 2008, pp. 8-12, “Folha Explica”, n. 79.

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