Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando, como um
cruzado, pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a
salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o
socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei
mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isto não importa.
Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas.
Tudo
que diz respeito ao humano, suas vidas, suas criações, me importam
supremamente. Dentro do humano, o povo brasileiro, seu destino é o que
mais me mobiliza. Nele, a ínvia indianidade brasileira, que consegue
milagrosamente sobreviver. Mas, sobretudo, a massa de gente nossa, ainda
em fusão, esforçando-se para florescer numa nova civilização tropical,
mestiça e alegre.
Acho que aprendi isso, ainda muito jovem, com os antigos comunistas.
Imbatíveis em sua predisposição generosa de se oferecerem à luta, por qualquer causa justa, sem mais querer que o bem geral. Estou certo de que a dignidade, e até o gozo de viver que tenho, me vêm dessa atitude básica de combatente de causas impessoais. Tanto, que me atrevo a recomendar duas coisas aos jovens de hoje.
Primeiro, que não
respeitem seus pais, porque estão recebendo, como herança, um Brasil
muito feio e injusto, por culpa deles. Minha também, é claro. Segundo,
que não se deixem subornar por pequenas vantagens em carreirinhas
burocráticas ou empresariais pelo dinheirinho ou dinheirão que poderiam
render.
Mais vale ser um militante cruzado, acho eu.
Vejo os jovens de
hoje esvaziados de juventude, enquanto flama, combatividade e
indignação. Deserdados do sentimento juvenil de solidariedade humana e
de patriotismo e de orgulho por nosso povo.
Incapacitados para
assumir as carências dos brasileiros como defeitos próprios e sanáveis
de todos nós. Ignorantes de que o atraso, a fome e a pobreza só existem e
persistem, entre nós, porque são lucrativos para uma elite infecunda e
cobiçosa de patrões medíocres e de políticos corruptos.
Afortunadamente,
podemos nos orgulhar de muitos jovens brasileiros que são o sémen de
nosso povo sofredor. Sem eles, nossa Pátria estaria perdida. É
indispensável, porém, ganhar a totalidade da juventude brasileira para
si mesma e para o Brasil. O dano maior que nos fez a ditadura militar,
perseguindo, torturando e assassinando aos jovens mais ardentemente
combativos da última geração, foi difundir o medo, promover a
indiferença e a apatia. Aquilo de que o Brasil mais necessita, hoje, é
de uma juventude iracunda, que se encha de indignação contra tanta dor e
tanta miséria. Uma juventude que não abdique de sua missão política de
cidadãos responsáveis pelo destino do Brasil, porque sua ausência é
imediatamente ocupada pela canalha.
Talvez eu veja tanto
desencantamento, onde o que há é apenas o normal das coisas ou o
sentimento do mundo que corresponde às novas gerações. Talvez seja
assim, mas isso me desgosta muito. Desgosta, principalmente, porque
sinto no fundo do peito que é obra da ditadura militar tamanha juventude
abúlica, despolitizada e desinteressada de qualquer coisa que não
corresponda ao imediatismo de seus interesses pessoais. É por isso que
não me canso de praguejar e xingar, exaltado, dizendo e repetindo
obviedades.
Sobretudo, quando falo à gente jovem em pregações
sobre valores que considero fundamentais e que não ressoam neles como eu
quisera.
Primeiro de tudo, o sentimento profundo de que esse
nosso paísão descomunal e esse povão multitudinário, que temos e somos,
não nos caiu ao acaso, nem nos veio de graça. É fruto e produto de
séculos de lutas e sacrifícios de incontáveis gerações. O território
brasileiro é do tamanho que é graças à obsessão portuguesa de fronteira,
impressa neles por um milênio de resistência, para não serem absorvidos
pela Espanha, como ocorreu com todos os outros povos ibéricos. Desde os
primeiros dias de nosso fazimento estava o lusitano preocupadíssimo em
marcar posses, gastando nesse esforço gerações de índios e caboclos que
nem podiam compreender que nos faziam.
Meu apego apaixonado pela
unidade nacional começa pela preservação desse território como a base
física em que nosso povo viverá seu destino. Encho-me da mais furiosa
indignação contra quem quer que manifeste qualquer tendência
separatista. Acho até que não poderia nunca ser um ditador, porque
mandaria fuzilar quem revelasse tais pendores.
Outro valor supremo, e até sagrado, que quero comunicar à juventude, é
o sentimento de responsabilidade pelo atroz processo de fazimento de
nosso povo, que custou a vida e a felicidade de tantos milhões de índios
caçados nas matas e de negros trazidos de África, para serem
desgastados no moinho brasileiro de gastar gente. Nós viemos dos
zés-ninguém gerados pela índia prenhada pelo invasor ou pela negra
coberta pelo amo ou pelo feitor. Aqueles caboclos e mulatos, já não
sendo índios nem africanos e não sendo também admitidos como europeus,
caíram na ninguendade. A partir desta carência de identificação étnica é
que plasmaram nossa identidade de brasileiros.
Fizeram-no um
século depois, quando, através dos insurgentes mineiros, tomamos
consciência de nós brasileiros como um povo em si, aspirando existir
para si.
Surgimos, portanto, como um produto “inesperado e
indesejado do empreendimento colonial que só pretendia ser uma feitoria.
A empresa Brasil se destinava era a prover o açúcar de adoçar boca de
europeu, o ouro de enricá-los e, depois, minerais e quantidades de
gêneros de exportação.
Éramos, ainda somos, um proletariado
externo aqui posto para servir ao mercado mundial. Criá-lo foi a façanha
e a glória das classes dominantes brasileiras, cujo empenho maior
consistia, e ainda consiste, em nos manter nessa condição.
Foi
sobre esse Povo-Nação, já constituído e levado à independência com
milhões de caboclos e mulatos, que se derramou a avalancha européia
quando seus trabalhadores se tornaram descartáveis e disponíveis para a
exportação como imigrantes. Os melhores deles se identificaram com o
povo antigo da terra e até se tornaram indistinguíveis de nós, por sua
mentalidade, língua, cultura e identificação nacional. Ajudaram
substancialmente a modernizar o país e a fazê-lo progredir, gerando uma
prosperidade ampliada, a inda que muito restrita, e que beneficiou
principalmente aos recém-vindos.
É de lamentar, porém, que vez por
outra surja, entre eles, uns idiotinhas alegando orgulhos de
estrangeiridade. O fazem como se isso fosse um valor, mas principalmente
porque estão predispostos seja a quebrar a unidade nacional em razão de
eventuais vantagens regionais, seja a retornarem eles mesmos para
outras terras, como fizeram seus avós. Afortunadamente, são uns poucos.
Com um pito se acomodam e se comportam.
Compreendem, afinal, que
não há nesse mundo glória maior que participar da criação, aqui, da
civilização bela e justa que havemos de ser.
Tal como ocorreu com
nossos antepassados, hoje, o Brasil é nossa tarefa, essencialmente de
vocês, meus jovens. A história está a exigir de nós que enfrentemos
alguns desafios cruciais que, em vão, tentamos superar há décadas.
Primeiro que tudo, reformar nossa institucionalidade para criar aqui uma
sociedade de economia nacional e socialmente responsável, a fim de
alcançarmos uma prosperidade generalizada a todos os brasileiros. O
caminho para isso é desmonopolizar a propriedade da terra, tirando-a das
mãos de uma minoria estéril de latifundiários que não plantam nem
deixam plantar. Eles são responsáveis pelo êxodo rural e o crescimento
caótico de nossas cidades e, conseqüentemente, pela Fome do povo
brasileiro. Fome absolutamente desnecessária, que só existe e só se
amplia porque se mantém uma ordem social e um modelo econômico compostos
para enriquecer os ricos, com total desprezo pelos direitos e
necessidades do povo.
Simultaneamente, teremos de derrubar o corpo
de interesses que nos quer manter atados, servilmente, ao mercado
mundial, exigindo privilégios aos estrangeiros e a privatização das
empresas que dão ser e substância à economia nacional, para manter o
Brasil como o paraíso dos banqueiros. Não se trata de criar aqui nenhuma
economia autárquica, mesmo porque nascemos no mercado mundial e só nele
sobreviveremos.
Trata-se é de deixar de ser um reles proletariado
externo para ser um povo que exista para si mesmo, ocupado
primacialmente em promover sua própria felicidade.
Essas lutas só
podem ser travadas com chance de vitória desmontando a ordem política e o
sistema econômico vigentes. Seu objetivo expresso é preservar o
latifúndio improdutivo e aprofundar a dependência externa para manter
uma elite rural esfomeadora e enriquecer um empresariado urbano servil a
interesses alheios. Todos eles estão contentes com o Brasil tal qual é.
Se não anularmos seu poderio, eles farão do Brasil do futuro o país que
corresponda aos interesses dos países que nos exploram.
Nestas singelas proposições se condensa para mim o que é substancial
da ideologia política que faz dos brasileiros, brasileiros dignos. Tais
são o zelo pela unidade nacional, o orgulho de nossa identidade de povo
que se fez a si mesmo pela mestiçagem da carne e do espírito; a
implantação de uma sociedade democrática onde imperem o direito e a
justiça para todos; a democratização do acesso à terra para quem nela
queira morar ou cultivar; a criação de uma economia industrial autônoma
como o são todas as nações desenvolvidas.
Eis o que peço a cada
jovem brasileiro: repense estas idéias, reavalie estes sentimentos e
assuma, afinal, uma posição clara e agressiva no quadro político
brasileiro.
– Darcy Ribeiro “Fala aos moços” – Prólogo. in ‘Carta:
falas, reflexões, memórias’. Brasília, Gabinete do Senador Darcy
Ribeiro, n. 12, p. 7-10, 1994.
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