São Paulo, 12 de agosto de 1987
Querida mãe, querido pai,
Não
sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo de uma casa cheia de pais e
mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas. Tenho vivido tão só
durante tantos — quase quarenta — anos. Devo estar acostumado.
Dormir
24 horas foi a maneira mais delicada que encontrei de não perturbar o
equilíbrio de vocês — que é muito delicado. E também de não perturbar o
meu próprio equilíbrio — que é tão ou mais delicado.
Estou me
transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que
só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas
aparentemente simples como “eu gosto de você”. Gosto de mim. Acho que é o
destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra
coisa, sou um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida — como quem
olha de uma janela — mas não consegue vivê-la.
Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem conseguir dizer nem
mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a secura da palavra. Por
trás disso, há muito amor. Amor louco — todas as pessoas são loucas,
inclusive nós; amor encabulado — nós, da fronteira com a Argentina,
somos especialmente encabulados. Mas amor de verdade. Perdoem o
silêncio, o sono, a rispidez, a solidão. Está ficando tarde, e eu tenho
medo de ter desaprendido o jeito. É muito difícil ficar adulto.
Amo vocês, seu filho.
Caio
Caio Fernando Abreu, no livro “Caio Fernando Abreu: o essencial da década de 1980”. Nova Fronteira, 2014.
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