Apenas onze das 3.367 armas apreendidas pela polícia do Rio de
Janeiro desde 2016 têm origem lícita — o verdadeiro problema são as
ilícitas
Um espectro ronda a discussão sobre segurança pública no Brasil: o espectro da liberação das armas. Quem
é contra garante que, com o afrouxamento das restrições ao porte/posse
de arma, viveremos uma carnificina diária; discussões sobre o preço do
tomate na feira acabarão em banhos de sangue. Quem é a favor afirma que
armas de fogo resolvem de invasão de domicílio a unha encravada, além de
serem ótimas como peso de papéis. Nem lá, nem cá, eu levanto dados e números. Aqui vai um deles: 0,022%.
Eu pedi, e a Secretaria de Polícia Civil do Rio prontamente forneceu, via Lei de Acesso à Informação, microdados
(ou seja, os dados separados, um a um) das apreensões de armas e
munição no estado entre janeiro de 2016 e julho deste ano. Com dois detalhes importantes: se a origem da arma é lícita ou ilícita e a que tipo de dono pertenciam.
Das 48.656 armas listadas pela Polícia Civil como apreendidas nos
últimos 43 meses, apenas 83, ou 0,17%, constam como tendo origem lícita. Já seria um dado suficiente para embasar o que já escrevi algumas vezes: o
verdadeiro problema são as armas ilegais, ilícitas, — no caso das
apreendidas de 2016 para cá, 99,83% do total, — não as armas
registradas, com dono, endereço, CPF etc. Mas vamos adiante.
Vou retirar da conta as armas das polícias, Forças Armadas e outras forças de segurança que foram apreendidas
— em situações, por exemplo, para perícia após confronto, ou
recuperação de armamento desviado, ou listadas no caso de furto ou roubo
de armamento — e as armas não identificadas por qualquer motivo, como
as que têm a numeração raspada. Vamos olhar só as armas com registro particular (que podem pertencer a pessoas comuns, militares, policiais).
Nestes mais de três anos e meio, foram apreendidas 3.367 armas marcadas
pela polícia como “registro particular” — sejam elas lícitas ou
ilícitas. Temos aí mais um argumento contra a histeria acerca da
flexibilização do porte e da posse: só 6,9% do armamento apreendido está na mão de (ou pertencia a) particulares. Só que dá para ir além.
Dessas 3.367 armas, 3.356 têm procedência ilícita. Mas 1.224
destas ou foram entregues voluntariamente na campanha do desarmamento
(314 armas) ou foram roubadas, furtadas ou extraviadas — em alguns
casos, durante outros crimes, como roubo de carga, homicídio etc. Ou
seja, o crime não foi cometido com a arma: a perda ou furto da arma é o crime em si. Sobram 2.132 armas; não que seja pouco, mas o número corresponde a 4,38% do total de apreensões.
Chegamos, então, às armas de procedência lícita. São 11. Onze. Oito
pistolas e três revólveres apreendidos em 43 meses. Míseros 0,022% do
total das armas apreendidas. Todas .38, um calibre comum em
armamento de defesa pessoal no Brasil. Sete registros de ocorrência na
Baixada Fluminense, dois no Norte Fluminense, um na Região dos Lagos e
um na Região Serrana. Um caso em 2017, três em 2018 e sete em 2019. Apreendidas
nos seguintes crimes: quatro tentativas de roubo de veículo, duas
tentativas de homicídio, uma ameaça, um roubo a pedestre e um roubo não
especificado (outros), uma tentativa de roubo não especificada e um
registro de resistência. Como se vê, mais crimes tentados do que levados a cabo.
Ou seja, se é possível usar a apreensão de armas como termômetro,
todo o desespero, todos os discursos no plenário do Congresso, todo o
pânico nas ruas, as discussões, os debates, as mesas redondas, as
plenárias em universidades, as dissensões familiares, tudo isso, pelo
menos no Rio de Janeiro, se refere a 11 armas apreendidas em 43 meses.
Dá uma coronha ou um cano por mês, em média, num estado com quase 17
milhões de habitantes. É cerca de nada.
Dando uma olhada nos outros lados da cerca da questão armamentista, mais
me preocupam as 357 armas patrimoniadas das forças de segurança que
constam nos dados da Polícia Civil como furtadas ou roubadas de 2016
para cá. Dá uma arma perdida para criminosos a cada quatro dias, em média.
Ou então as — isso sim é de assustar — 17.238 armas ilícitas, não
patrimoniadas ou sem identificação retiradas de circulação no período. Armas
envolvidas em crimes singelos como tráfico de drogas, associação para o
tráfico, corrupção de menores, homicídio e roubo. Uma média de 13 armas
— fuzis, carabinas, metralhadoras, submetralhadoras, pistolas,
revólveres etc — apreendidas por dia.
Talvez sejam esses os números contra os quais a sociedade deveria estar
organizando passeatas, berrando em praça pública, pressionando o Estado
em busca de uma solução. Que, claro está, não passa por apreender mais
armas, mas acabar com o enxugamento de gelo e sustar a entrada de armamento ilegal no estado.
Porque os traficantes que portam a esmagadora maioria dessas armas
não são integrantes da Resistência Francesa lutando contra os nazistas,
ou Robin Hoods de bermuda e chinelo lutando contra o xerife de Sherwood,
ou paladinos da justiça protegendo a população pobre e esquecida. Traficantes
são bandidos, gente à margem do Estado que não merece carinho,
compreensão ou afagos. São criminosos e devem ser presos. Mas dizer
essas coisas não faz sucesso nas rodas de amigos, nem nos debates. É
mais fácil jogar pedra naquele pessoal das 11 armas, que não vai reagir
nem posa de vítima da sociedade.
Gian Paolo Morgado Braga - Época
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