Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho
pelo terraço para o pedaço de praia com mar, e vejo às vezes que as
espumas parecem mais brancas e que às vezes durante a noite as águas
avançaram inquietas, vejo isso pela marca que as ondas deixaram na
areia. Olho as amendoeiras de minha rua. Presto atenção se o céu de
noite, antes de eu dormir e tomar conta do mundo em forma de sonho, se o
céu de noite está estrelado e azul-marinho, porque em certas noites em
vez de negro parece azul-marinho. O cosmos me dá muito trabalho,
sobretudo porque vejo que Deus é o cosmos. Disso eu tomo conta com
alguma relutância.
Observo o menino de uns dez anos, vestido de trapos e macérrimo. Terá futura tuberculose, se é que já não a tem.
No
Jardim Botânico, então, eu fico exaurida, tenho que tomar conta com o
olhar das mil plantas e árvores, e sobretudo das vitórias-régias.
Que
se repare que não menciono nenhuma vez as minhas impressões emotivas:
lucidamente apenas falo de algumas das milhares de coisas e pessoas de
quem eu tomo conta. Também não se trata de um emprego pois dinheiro não
ganho por isso. Fico apenas sabendo como é o mundo.
Se tomar conta do mundo dá trabalho? Sim. E lembro-me de um rosto
terrivelmente inexpressível de uma mulher que vi na rua. Tomo conta dos
milhares de favelados pelas encostas acima. Observo em mim mesma as
mudanças de estação: eu claramente mudo com elas.
Hão de me
perguntar por que tomo conta do mundo: é que nasci assim, incumbida. E
sou responsável por tudo o que existe, inclusive pelas guerras e pelos
crimes de lesa-corpo e lesaalma. Sou inclusive responsável pelo Deus que
está em constante cósmica evolução para melhor.
Tomo desde
criança conta de uma fileira de formigas: elas andam em fila indiana
carregando um pedacinho de folha, o que não impede que cada uma,
encontrando uma fila de formigas que venha de direção oposta, pare para
dizer alguma coisa às outras.
Li o livro célebre sobre as abelhas,
e tomei desde então conta das abelhas, sobretudo da rainha-mãe. As
abelhas voam e lidam com flores: isto eu constatei. Mas as formigas têm
uma cintura muito fininha. Nela, pequena, como é, cabe todo um mundo
que, se eu não tomar cuidado, me escapa: senso instintivo de
organização, linguagem para além do supersônico aos nossos ouvidos, e
provavelmente para sentimentos instintivos de amor-sentimento, já que
falam. Tomei muita coisa das formigas quando era pequena, e agora, que
eu queria tanto poder revê-las, não encontro uma. Que não houve matança
delas, eu sei porque se tivesse havido eu já teria sabido. Tomar conta
do mundo exige também muita paciência: tenho que esperar pelo dia em que
me apareça uma formiga. Paciência: observar as flores
imperceptivelmente e lentamente se abrindo.
Só não encontrei ainda a quem prestar contas.
– Clarice Lispector, do livro “Aprendendo a viver”. Rio de Janeiro: editora Rocco, 2004.
(*Crônica de Clarice Lispector, publicada originalmente no ‘Jornal do Brasil, 4 de março de 1970)
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