domingo, 26 de junho de 2011

Última carta a Mário de Andrade

São Paulo, Rua Guarará, setembro, 1970

Mário:

A sua casa acha-se como a da rua Aurora, no meio da barafunda de toda a Barra Funda. Foi atravessando pela frente e por trás dos caminhões e automóveis que galgamos a calçada. Sabe quem atendeu o nosso toque de campainha?... A Sebastiana, a nossa velha Sebastiana, que logo nos reconheceu e o seu rosto coroado de cabeleira branca, branca, iluminou-se recordando de nós dois. Só de nós dois?

Não! Recordando também daquelas duas velhinhas que você adorava e eu tanto amava e tanto era amado por elas, conforme está em alguma de suas cartas: Dona Maria Luiza e Dona Ana Francisca para os estranhos, para nós D. Yayá e D. Nhãnhã, sua Mãe e sua madrinha e tia, que também já se foram, pra junto de você, talvez...

Eu ia relativamente pouco à rua Lopez Chaves. Havia sempre muita gente com você, muitos tipos interessantes e agradáveis uns, mas muitos bobos também que frequentavam você, para pôr você à esquerda deles, a fim de valorizar o zero. Você deve estar lembrado disso, "se, lá no etéreo assento onde subsiste, memória desta vida se consente"...

Sempre preferi ir à sua casa quando ficávamos sozinhos na companhia daquela três velhinhas, pois a Sebastiana também conta. Almoçávamos ou jantávamos sós, ou conversávamos com o Zé Bento, raramente com mais alguém.

Creio mesmo que o dia em que mais tempo fiquei, naquele gabinete lá de cima, foi quando brigamos pra burro, até você aceitar a direção do Departamento de Cultura, para o qual eu o queria levar e você não queria ir:

— Você quer acabar com a minha felicidade m'ermão! —, me disse vencido.

E acabei mesmo, como você me desabafava em carta remetida para Nova York,
pouco antes de ir dormir para sempre...

Pois é Mário, nosso passeio termina aí. Não quis ir à Consolação. Nem jamais irei! Que podia valer uma fotografia de sua sepultura, para a reportagem que o Múcio vai escrever e o Zygmunt vai ilustrar a cores? Lá na Consolação, está a casa do seu corpo que já nem existe, ao passo que o seu espírito vive aqui comigo, como tantos outros que também me deixaram no meio do caminho.

Será que nós havemos de nos encontrar um dia? A Nini e a Lourdes, que são íntimas de Deus e até o tratam de você, afirmam categoricamente que sim. Eu duvido. Mas não nego. Quem pode negar ou afirmar? Só a Fé ou a burrice festiva do exibicionismo.

De qualquer maneira, velho Mário, "Ciao!". Ou até já!...

 
Paulo Duarte in Mário de Andrade por Ele Mesmo.
São Paulo: Hucitec/SCCT - SP, 1977


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