quinta-feira, 20 de agosto de 2009

À deriva


À Deriva, o filme recente de Heitor Dahlia que está em cartaz provocando a mente de seus espectadores é, a meu ver, o próprio nome desta coisa que é “estar à deriva”. Também para pensar nesta sensação - que é ainda um conceito - é que vale a pena assisti-lo. Por si só o filme seria bonito demais, fotograficamente falando, mas provoca tantos pensamentos que não é possível deixá-los de lado.

O filme coloca quem o vê à deriva.

Ouvi algumas pessoas perguntando o que é “deriva”. Um barco sem rumo, ou que perdeu seu porto seguro. Quando vejo um mendigo perambulando pela rua sempre penso no que nele é viajante à deriva. Quando fico diante da televisão, ou com a cabeça vazia de pensamentos, também me sinto à deriva. Fico à deriva quando minha filha viaja. Fico à deriva quando estou muito cansada e não posso mais fazer nada. Talvez seja um conceito bem importante para entender a vida que se leva nas grandes cidades, ou no mundo ligado pelos meios de comunicação, pela tv e pela internet. Estar à deriva é ter sobrado em algum lugar. Ou ter tempo sobrando e não ter o que fazer com ele. Talvez o cotidiano seja o mar onde cada um ora se acha, ora se perde.

A história da menina Felipa não serve só para tornar ainda mais problemática a descoberta da sexualidade na adolescência que se confronta com a confusão adulta entre dor e poder. As relações adultas, entre aqueles que depois de tudo o que viveram deveriam ter “amadurecido”, mostram-se infantis requerendo outras posturas de quem é mais jovem e ainda não viveu, mas, como diz Felipa, viveu o suficiente para ter visto muita coisa.

O filme é para adultos que um dia foram adolescentes. Para adolescentes que querem ser diferentes dos estereótipos inventados pelos adultos e para adultos que se tornaram cegos. Como cinema é a arte de reaprender a ver, quem sabe o filme ajude como espelho.

Eu disse que diante do enredo e das imagens que compõem o filme fica-se facilmente ”à deriva”. Isso pode ser interpretado em dois níveis pelo menos. Um deles é o do “significante”: as imagens todas buscam criar a atmosfera dos afetos que a água vem representar. Assim é que no filme, corpos flutuam na água, a água escorre, a água lava a louça; as crianças brincam na água, de brigar, de afogar. A água, seja da piscina, seja da torneira, seja do mar, é mais que pano de fundo, é atmosfera geral. E os personagens, como peixes, são os que menos sabem da água. Bom seria ler pra acompanhar o livro de Gaston Bachelard chamado A água e os Sonhos.

Lembrei de Heráclito e a idéia de que ninguém vai entrar na mesma água duas vezes.

Tramando-se na aquosidade que nos põe no âmbito estético, surge o âmbito ético do filme. O enredo conta uma história em que a descoberta pessoal da sexualidade, a perda da inocência, culminam na viagem de uma garota para fora de sua infância. Mas, sobretudo, me pareceu uma viagem que nós, espectadores temos de fazer para longe de nossas ilusões sobre a adolescência.

Assim é que me parece que o filme vai bem além da questão do alcance da sexualdiade/ perda da inocência. Dos vários momentos em que a decisão de Felipa é posta à prova, há uma de séria inflexão para a idade adulta. Refiro-me à cena em que ela tem nas mãos um revólver e mira o abismo. Lembra as pinturas do romantismo alemão do século XIX. Caspar David Friedrich, por exemplo. Lembra a filosofia de Kierkegaard para quem a angústia é a condição humana diante da escolha. A escolha é sempre abismo.

O filme mostra, neste aspecto, uma compreensão da adolescência como confronto com o abismo. Estar à deriva é, de certo modo, estar na vertigem. Para mim, esta cena descrita mostra a imagem genérica da vida de muitas pessoas que conheço, que conheci. Certamente, de tantas outras que não tive a sorte de conhecer. Pessoas que viveram a adolescência como um limiar, como um limbo, uma suspensão.

O filme é bem mais que isso. Jogo de forças entre gerações, gêneros e visões da família, do sexo, dos filhos, do marido, da mulher. É uma exploração no campo dos afetos sutis. Mas é, evidentemente, uma visão da passagem ao mundo adulto, uma visão que supõe o olhar de quem está de fora. Também esta passagem ao mundo adulto pode ter dois lugares: a ética ou a covardia. Esta última parece caracterizar muito mais a vida dos adultos.

Quando eu era jovem - bem jovem - eu prometi à minha juventude que eu nunca perderia a minha crença de que a vida não seria como querem os adultos. Eu quero ficar velha, sempre digo, mas não quero ficar antiga. Vendo este filme, descobri que quero ficar velha e permanecer jovem. Adulta realmente não está nos meus planos.


Márcia Tiburi
http://colunas.gnt.globo.com/pinkpunk/

Um comentário:

Unknown disse...

O que me conforta é a presença de Deus em minha vida !!! isso sim é o verdadeiro patrimonio de um ser vivo; pois , mesmo chegando a velhice, lá no íntimo...não importa a adversidade...a casa vai continuar na rocha; onde os ventos do mundo sopram e não a derrubam; pois o mundo está passando...e com ele os desejos dos olhos...da carne...mas, aqueles que fazem a vontade de Deus, permanecem para sempre.