A lembrança chega muito viva. Decorria o ano de 1967. Estava eu na cidade de Pombal, alto sertão paraibano, na agência local do Banco do Brasil, onde trabalhava. De repente, como que por magia, ouvi uma voz alta, meio trôpega, que vinha do outro lado do balcão de atendimento: “Os nove planetas são / Do mais próximo ao mais distante / Mercúrio, Vênus, a Terra / Marte e Júpiter gigante / Saturno, Urano e Netuno / E Plutão, o culminante…”.
Aproximei-me e vi um senhor de boa estatura, idoso, esbelto, agalegado, olhos azuis, pele rosada marcada pelo tempo e olhar vivo. Rodeado por curiosos ele fazia versos. E então perdi a noção do tempo e do trabalho para ficar escutando aquele homem já velho que se expressava de supetão, com certa dificuldade, como que cuspindo as palavras, vez por outra expelindo saliva, aqui acolá pigarreando: “ Nossa terra é um planeta / Que gira pelo espaço / Gravita em volta do sol / Sem o menor embaraço / O seu satélite é a lua / Que lhe segue passo a passo…”.
Tinha contato eu, pela primeira vez, com Belarmino de França, um dos maiores poetas, cantadores e repentistas que conheci. Fiquei tão impressionado com sua verve poética que procurei saber mais a seu respeito. E sabendo mais sobre ele minha admiração aumentou. Admiração pela sua vida, pelo ser humano que era e pelo artista que encarnava.
Belarmino Fernandes de França — esse o seu nome completo — nasceu no dia 26 de dezembro de 1894 no sítio Várzea da Serra, em Paulista, hoje cidade, mas povoado à época e depois vila e distrito do município de Pombal. Era oriundo de uma família humilíssima, como ele mesmo contava em versos: “Lá em casa uns tinham rede / Outros dormiam no chão / Ou numa cama de varas / Sem coberta nem colchão / Mas ali ninguém ouvia / Queixa nem reclamação… Mesa lá não existia / Na hora da refeição / Todos ao redor da panela / Sentado em cepo ou no chão / Botava o prato entre as pernas / Comia à satisfação…”.
Até os 12 anos de idade, seu Belo, como também era conhecido, nunca tinha ouvido falar em estudos. É que passara todo esse tempo da vida no sítio, cuidando de roças e animais. Por essa época, a convite de um tio, passou 26 dias estudando por lá mesmo, com um professor que esse seu parente contratara para ensinar seus filhos. Depois, já com 22 anos de idade, estudou por mais 19 dias numa escola rústica perto de sua casa. E foi só: 45 dias de estudos formais em toda a sua vida. O resto aprendeu sozinho, como ele próprio dizia: “Daquele tempo em diante / Das letras me fiz amigo / Lia jornal e revista / Romance, livro e artigo / Tudo que lia e ouvia /Ficava impresso comigo…”.
Belarmino de França só veio ter consciência dos seus dotes de poeta, cantador e repentista aos 13 anos de idade. E isto surgiu quase que por acaso. É que nos dias de feira, era sempre ele que tinha de ficar tomando conta da casa e preparando a comida, razão pela qual estava impedido de acompanhar a família ao povoado, o que o deixava triste — feiras da espécie são como festa para as pessoas desses rincões sertanejos. Assim, num misto de revolta e desabafo, fez o seu primeiro improviso, com erros de grafia e concordância, mas com muita sabedoria: “Todos sai a passiá / E eu fico dentro de casa / Socado dentro da brasa / Arriscando a mim queimá / Tomém quero ir brincar / Pruquê tenho pricisão / Vivo nessa condição / Não posso nem ir a feira / Sendo assim dessa maneira / Sou das trempes do fogão”.
Após seus primeiros estudos — 26 dias de aulas — e dotado que era de memória fotográfica, Belarmino descobriu que tudo o que lia ficava indelevelmente gravado em sua mente. E que de lá não saía mais. Assim, depois do seu segundo período de escola — 19 dias de aulas — procurou ler o que lhe caísse nas mãos, devorando jornais, revistas, livros, a tabuada, cordéis, bulas, letreiros, folhetos, anúncios, enfim, tudo o que tivesse letras ou números.
Dessa maneira é que o menino que fez seus primeiros versos cheios de erros, quando adulto já estava íntimo da língua pátria, falando e escrevendo corretamente e, ainda, dominando a gramática e suas regras, como ele mesmo reconhecia: “Conheço trema e aférese / Antônimo e interjeição / Síntese, verbo e advérbio / Pronome e preposição / Conjunção, nome e artigo /Crase e traço de união”.
É que, com o tempo, ele deve ter bebido sabedoria e conhecimentos em bibliotecas de intelectuais e instituições de Pombal, a cidade mais próxima da propriedade de sua família, já que, à época, bons livros eram difíceis de ser adquiridos naquela localidade interiorana, como em muitas outras do interior do país. Desse modo, deve ter recebido grande apoio logístico das bibliotecas do médico Atêncio Bezerra Wanderley, do promotor de justiça Nélson Nóbrega, da oficiala de registro público Nena Queiroga, do dentista Wilson Nóbrega Seixas, da professora de história Ivanilde Bandeira, da Sociedade Artística Beneficente de Pombal e da Paróquia local, além de muitos outros.
Por isto é que ao longo da vida, como autodidata que era, adquiriu incomensurável cultura, para o que foram indispensáveis sua grande força de vontade, descomunal inteligência e fabulosa memória. E isto fica muito claro ao se ter conhecimento de depoimento seu, quando afirmou: “Tive apenas 45 dias de aulas. E o pouco que aprendi e do muito que hoje sei foi desembestado por conta própria, comigo mesmo. Entendo do Apocalipse, sei da passagem da Divina Comédia de Dante, sirvo-me de Aristóteles, de Cícero e de Péricles. Luís de Camões é gato de casa e Cleópatra a face da beleza que vespertinamente encontro no poente, em nuvens, ensangüentada”.
Também, depois dos seus primeiros versos, seu Belo nunca mais parou de versejar, tornando-se grande e respeitado poeta, cantador e repentista, vencedor de cantorias e de pelejas. Com isto, era admirado pelos homens, cobiçado pelas mulheres e temidos pelos cantadores que com ele duelavam. Tudo sem nunca ter deixado de lado a sua profissão de lavrador e criador, de onde realmente tirava o sustento da família, já que cantava mais por amor à arte da poesia e do improviso.
Belarmino era uma pessoa serena e bem humorada, mas realista. Assim é que na velhice, quando já chegara aos 83 anos de idade, sentindo o peso da idade, improvisou: “Na mocidade sadia / O poeta é um herói / Mas lhe chegando a velhice / Definha e tudo lhe dói / O que a mocidade cria / Sempre a velhice destrói… A velhice nos corrói / Saúde, força e lembrança / O moço a tudo resiste / O velho com tudo se cansa / E é isto que está se dando / Com Belarmino de França”.
Cinco anos depois destes versos Belarmino Fernandes de França partiu desta para uma vida melhor. Faleceu — no mesmo pé de serra onde nascera — no dia 20 de março de 1982, aos 88 anos de idade, com longevidade para os de sua geração. Morreu satisfeito. Isso por ter amado, sido amado, deixado uma prole, ter aprendido a ler e por ser portador de conhecimentos mil. Por ser poeta, cantador e repentista. Por ter legado ao mundo a sua poesia e o seu saber. E por ter dado sua contribuição à cultura do seu povo. Ou seja, satisfeito pela vida que teve. E hoje deve estar lá no andar de cima improvisando os seus versos. Isto numa roda de parentes, amigos, poetas e intelectuais. Todos cercados por arcanjos, querubins e serafins. Estes atentos e com as harpas mudas. Mudas para não prejudicarem o ponteio da viola do poeta. Nem as rimas dos seus versos.
Everaldo Dantas da Nóbrega
(Obs. — O autor desta matéria reavivou sua memória sobre Belarmino de França ao ler o livro “Belarmino de França, um Trovador do Sertão”, de Verneck Abrantes ).