quinta-feira, 16 de julho de 2009

O homem da luz


Há pessoas que por sua natureza parecem ter eternamente pousada sobre o ombro uma borboleta. E a gente fica distante, longe a admirá-las, munido, quem sabe, de extremo sentimentalismo, com receio de calcular uma aproximação mais ruidosa e desfazer o encanto arribando num voo a mariposa. Seu Joaquim é uma dessas criaturas admiráveis que a gente vive a cercar com os olhos, porém, em respeitosa distância. Mas outro dia, com o devido cuidado, peculiar e próprio aos naturalistas, cuidei de encurtar essa lonjura e tratei de ter com ele um bocadinho de prosa, uma chance de desvendar aquele encanto e conhecer melhor o “homem da luz.” Uma conversa divorciada dos relógios, sem tempo para intervalos nem interrupções, exceto pelo insistente canto de um pássaro craúna que teimava em também querer fazer parte daquele diálogo, não fosse o óbice de sua gaiola pendurada numa parede sonorizando os afazeres domésticos de D. Nedina.

“O tempo é uma rede de balanço que nos embala de lá pra cá”, já vaticinava o poeta repentista. É impossível prosseguir adiante sem se reportar ao passado, sobretudo, quando o passado é o alicerce do presente e exemplo para o futuro. A conversa se deu numa tarde, assim como naquela tarde de Pombal em que outubro agonizava na quentura ardida do sertão, nos idos de 1950, onde, a passos firmes, caminhava pelas ruas da cidade um jovem alto, esguio, magro, aparentando 21 anos de idade, indo em direção a casa do motor da luz, para às 17:30 horas acioná-lo distribuindo luminescência às vielas e logradouros do outrora Arraial de Piranhas. Com a luz nos postes de madeira a alumiar a rua podia-se encompridar uma conversinha até mais tarde na calçada do vizinho ou dar motivos para o debulhe de um carteado até as 23:00 horas, nem um tempinho a mais que isso. Cinco minutos antes daquele mundaréu de luz se escurecer de vez, o jovem Joaquim Cândido da Silva, tinha o cuidado de dar uma piscadela nas lâmpadas, desligando e religando o velho motor da luz movido a óleo. Era o sinal do recolhimento às suas casas naquela gleba do sertão, o prenúncio de muitos “até amanhã comadre”, o fim do jogo de ludo ou de baralho e derradeira oportunidade para o primeiro ou último beijo dos namorados na pracinha da matriz. Era a hora de apagar a luz! Somente a lua, teimosa, serena como ela é pendurada lá no céu, e um sem-número de estrelas, assumiam a responsabilidade de clarear a noite a partir dali.

Esse era o cenário das tantas noites de antigamente na cidade de Pombal. Luz, apenas das 17:30 às 23:00 horas, intervalo luminoso para os passeios dos casais, homens, mulheres e crianças. E seu Joaquim, de certa forma, era um dos responsáveis por esta claridade mágica movida à óleo.

Como tantos outros timoneiros, o jovem que clareava a cidade, aqui aportou ainda muito cedo, aos três anos de idade, vindo da zona rural da cidade de Paulista-PB, numa época em que os caminhos pareciam mais longos, viagens difíceis, feitas a pé ou em montaria. O menino Joaquim optou pela montaria. Viajou dia e meio escambichado no ombro do seu cunhado Henrique. Trajeto impensável para uma criança de tão tenra idade, mesmo em montaria, enfrentando as intempéries do tempo, o vermelhidão da planície sertaneja e o peso cansado das alpercatas. O sol os castigavam e esgotavam suas forças, revigoradas à noite nalguma areia fofa de riacho seco ou ao abrigo das folhagens dos juazeiros, rodeados de xiquexique e mandacarus. O calendário denunciava o ano de 1932.

Já em Pombal, Joaquim Cândido ingressou nos bancos escolares prolongando os estudos até a 4ª série primária, ano em que foi aluno da professora D. Jardilina Pereira Nóbrega. Apesar das “poucas letras” não esquece de D. Aurora, sua primeira professora, tampouco lhe foge a memória D. Marta e Marieta que lhe mostraram a conjugação das palavras e o sentido das frases no 1° e 2° ano primários, respectivamente, na escola dirigida pelo professor e historiador Wilson Nóbrega Seixas, cujos recursos pedagógicos eram a palmatória de cumaru, a cartilha do abc e a cartilha do povo. Nada mais que isso!

Aos 22 anos, o “homem da luz”, cedeu aos encantos de uma morena que lhe rendeu um namoro que enfatizava ele ter começado na praça Getúlio Vargas, devagarzinho e se estendeu sem pressa durante quatro anos, para em 1951, depois de galanteios e serenatas, desposar Francisca Benigno de Sousa, a sua “Chiquinha”, como carinhosamente se reporta, que lhe daria filhos e um remanso tranqüilo de paz e bem querer.

Com o passar dos anos e a chegada da energia elétrica vindo de Coremas-PB para clarear Pombal, o “homem da luz” arribou em direção a outros ofícios, alguns nascidos da experiência da lida mecânica com o velho e aposentado motor da luz movido a óleo, com cinco cavalos de potência, 600 rotações e um alternador, pertencente ao Major Arruda, razão porque não foi dificultoso tornar-se um eletricista, pois se de um lado tinha a convivência prática com o ofício, por outro, se detinha com os ensinamentos dos companheiros Saturnino e Davi, que também eram responsáveis pelo motor a óleo.

Já aos 25 anos de idade e casado, trabalhou na usina de algodão de Paulo Pereira Vieira; laborou com Vicente Farias na construção de bombas manuais de puxar água; foi comerciante no ramo de venda de materiais elétricos e peças de bicicletas na Casa Vênus, loja de sua propriedade, além de ter sido sócio em uma das marcenarias mais antigas da cidade.

Em Cajazeiras, no SENAI, aperfeiçoou a arte de consertar motores elétricos, instalando uma modesta oficina em sua própria casa.

Mais o périplo do “homem da luz” não parou por aí. Boêmio, tratou cedo em aprender as lições do maestro Eliseu Veríssimo, tornando-se músico com singular habilidade no trato com o clarinete e o saxofone. Integrou a banda de música municipal e em 1950 foi debulhar os dobrados na recepção ao presidente Getúlio Vargas na vizinha cidade de Sousa-PB.

Naquela época não existiam os “showmícios”, mas as campanhas eleitorais eram embaladas ao som de retretas de bandas musicais. Assim, o “homem da luz” se fez músico, animando comícios do Partido Social Democrático (PSD), dando sonoridade aos intervalos dos discursos de memoráveis políticos como Ruy Carneiro, Janduy, Azuil Arruda e Avelino.

“Família grande é família protegida”, sentencia o nordestino. As adversidades do tempo e as intempéries da natureza tornam o homem sertanejo um forte, desbravador na mais íntima concepção da palavra. Sua pujança e fortaleza são indomáveis e se exterioriza até na procriação. Seu Joaquim Cândido e sua “Chiquinha” tiveram nove filhos, cujos nomes teve o zelo e o cuidado de, um a um, citá-los todos: Ana Maria Benigno da Silva, Neuma Benigno da Silva, Maria do Socorro Benigno da Silva, Vera Lúcia Benigno da Silva, Maria Sueli Benigno da Silva, Joaquim Cândido da Silva Filho, Paulo Roberto Benigno da Silva, Gutemberg Benigno da Silva e Miriam Benigno da Silva. De quem mais gosta ? – De todos mestre! Aduziu ele, para em seguida se derramar numa lágrima, demonstração líquida dos sentimentos da alma, apego paternal ao agrado da filha “Socorrinha”. – Ela faz os meus dengos, está mais comigo, mestre! Justificou o “homem da luz”.

Apesar das “poucas letras”, atinou muito cedo a necessidade de oferecer educação aos filhos, não medindo esforços, Seu Joaquim e D. Chiquinha, viram, a muito suores, os filhos, pouco a pouco, caminharem com suas próprias pernas, trilharem seus caminhos, criarem asas por esses rincões de meu Deus.

Mas aquele jovem do motor da luz continuava a se encantar com tudo que lhe clareava a vista e, num arroubo de caixeiro viajante ou de mascate de ilusões, percorreu essas plagas com um projetor cinematográfico de marca RCA, 16mm, nas costas e alguns rolos de filmes nas mãos, e saiu por aí levando a alegria, a comédia e a tragédia da sétima arte, conduzindo cultura e entretenimento às cercanias do sertão, projetando filmes em escolas, clubes, associações, igrejas e onde fosse possível se acotovelar os expectadores. Mesmo em Pombal, onde já existia o Cine Lux, o “homem da luz” projetou roteiros, alguns deles pareciam contar-lhe a própria história.

Hoje aquele menino que aqui chegou conta com a idade de 80 anos e conservando a mesma lucidez de sempre, cercado pelo carinho dos filhos, o peso dos dias faz companhia à borboleta pousada no ombro. Percorre com certa dificuldade o seu pequeno e diário percurso entre a sua casa, a oficina do filho e as visitas a cunhada Nedina. Imposição do tempo talvez, capricho indolente e inexplicável dos anos que foram chegando, chegando, e se acomodando em seu corpo sem pedir licença nem explicações, e de inopino, sem consultar-lhe as horas, furtou-lhe o brilho dos olhos, logo a ele, o homem da luz!



Teófilo Júnior
Julho/2009

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