sábado, 30 de maio de 2020

Outro lado do terror do Reich: Os bordeis de Auschwitz

Prisioneiras do campo de concentração de Auschwitz - Getty Images

Em Auschwitz e nove outros campos de extermínio nazistas, todo um programa de prostituição oficial foi estabelecido.

Digamos que ela se chamasse Eva. Como a esposa de Hitler. Por motivos que ficarão óbvios, se já não são, as vítimas do tipo de atrocidade de que vamos falar não deixaram seus nomes reais. Todas são Frau A., Frau B.

Frau E. acaba de chegar ao campo de Auschwitz. Havia sido capturada por “conduta antissocial”, o termo que abrigava sem-tetos, alcoólatras, viciados, prostitutas e figuras que não eram classificadas como prisioneiros políticos. Logo na entrada, ela é separada das outras prisioneiras por um grupo da SS.

Muitas histórias corriam a respeito do que acontecia nos campos nazistas. Quem era separado na entrada eram velhos, crianças, quem não teria utilidade no trabalho forçado. Eram mandados imediatamente para o “banho” nas câmaras de gás.

E. sente que sua hora chegou. Mas os SS têm para ela não a morte imediata, mas uma proposta. É um trabalho leve, de meras duas horas por dia. Receberia uma ração extra e alojamento aquecido. Depois de seis meses, seria libertada.

Era uma proposta que não podia ser recusada. Quando ela é encaminhada para o banho, é só um banho mesmo. Sem demoras, segue-se o exame médico. Um ginecologista testa, apalpa, observa e faz perguntas sobre sua saúde, todas concentradas em sua vida sexual. Depois diz que precisa passar por uma pequena cirurgia. Que exige, porém, anestesia geral. No dia seguinte, Eva acorda com pontos no abdômen.

Ao ter alta, é apresentada a seu alojamento. No lugar de um uniforme, ganha um vestido e roupas de baixo. Coisa cara, tomada de uma vítima mais rica. E, de fato, o lugar é muito mais decente que os beliches infestados de percevejos aos quais estava acostumada. Recebe também um café da manhã. E é a mesma ração dada aos guardas. São quase 20h, hora do expediente. “Fique quieta, faça o trabalho, e nada de ruim vai acontecer”, é instruída.

Finalmente ela é conduzida ao local de trabalho. Um quarto. Antes que possa terminar de ligar os pontos, um homem adentra. É um prisioneiro como ela. Alemão, como ela. Um dos “triângulos verdes”, bandidos comuns usados pelos nazistas como força de repressão. Ouve, por trás das paredes, carrascos da SS dando risadinhas. E nota que há buracos nas paredes. Eles seriam observados.
A escolha era trabalhar ou tomar uma surra e ir parar na câmara de  gás. Sete outros a visitam naquela noite. E assim passaria a ser por três dias por semana mais as tardes de domingo. Até dez homens por dia.

Todos os dias, Frau E. podia ver pela janela a entrada do campo, logo em frente ao prostíbulo. Mas a promessa de libertação nunca seria cumprida. Algumas ganhariam trabalhos administrativos. Outras voltariam para o lugar de onde vieram. E havia também as destinadas a Auschwitz II — Birkenau, a seção de extermínio.

Eterno tabu

A história aqui contada é uma composição de diversos testemunhos, a grande maioria deles fragmentários ou dados não por quem viveu, mas por quem ouviu falar ou conversou com elas. Particularmente a descrição geral que Iga Bunalska, do Grupo de Estudos de Auschwitz, publicou num trabalho recente.

Não aconteceu apenas em Auschwitz I. Foram dez deles, como em Sachsenhausen, Dachau e Monowitz (também conhecido por Auschwitz III; um campo separado, a vários quilômetros do mais famoso. Em todos, menos Auschwitz, as prisioneiras vinham do campo feminino de Ravensbrück, de onde não só eram mandadas para bordéis em campos de extermínio como para instalações do Exército.

Numa estimativa citada por Insa Eschebach, diretora do Centro Ravensbrück, foram no mínimo 200 delas. Vinte e uma das quais trabalhavam no Bloco 24 de Auschwitz.

“Quando falamos nos bordéis, não há quase nenhuma fonte existente sobre o assunto”, afirma a historiadora. “Parece que o assunto ainda é um tabu. Depois da guerra, as pessoas fingiram que esse tema não existiu.” 

Além do profundo trauma pessoal, há um estigma da velha moral sexual. Várias das mulheres forçadas à prostituição, usando o triângulo preto, haviam sido presas por se prostituírem.

“É uma ironia que, enquanto os nazistas tentavam restringir a prostituição nas cidades alemãs, eles a institucionalizaram nos campos”, afirmou o historiador alemão Robert Sommers, autor de Das KZ Bordell (O Bordel do Campo de Concentração), em entrevista à Reuters.

Também havia o risco bem real de serem vistas como colaboradoras — e as diversas cenas de ex-amantes dos oficiais nazistas arrastadas pelas ruas e tendo os cabelos raspados pela multidão enfurecida, na liberação, mostram que, absolutamente, essa não era uma preocupação infundada.

O estigma já existia enquanto os campos estavam abertos. Num documentário para a TV pública alemã ARD, a prisioneira soviética Nina Mikhailovna, uma civil de 20 anos capturada na Bielorrússia para trabalhos forçados, que viveria em São Paulo antes de se estabelecer nos EUA, contou:
“Quando descobrimos que uma garota no nosso bloco foi escolhida, nós a pegamos, jogamos um lençol em cima dela e a espancamos com tanta força que ela mal podia se mexer. Não era certo se ela se recuperaria. Elas só queriam uma vida melhor, e nós as castigamos por isso”.

Produtividade

A ideia partiu de Heinrich Himmler, comandante da SS e responsável pelo programa de extermínio, engenheiro do Holocausto. Ele afirmou que isso serviria para motivar os trabalhadores forçados. E, em suas palavras, “evitaria homossexualismo” nos campos.

Parecia uma piada de mau gosto — a maior de todos os tempos, se de fato era. Uma forma adicional de humilhar os prisioneiros famélicos, não exatamente dispostos ao sexo em sua condição. Essa foi a opinião expressa por vários deles.

“Qualquer um que pense que o Bloco 24 era alguma espécie de presente aos prisioneiros não entende Auschwitz”, afirmou o prisioneiro polonês Jozef Szajna em seu testemunho. “Foi feito para humilhar as pessoas. Era só mais um exemplo do cinismo e crueldade dos alemães. Os bordéis não eram nada de excepcional. Só foram outro crime do Nacional Socialismo alemão.”

Acreditasse ou não Himmler no que estava fazendo, o primeiro campo abriu em Mauthausen/Gusen em 1942. Auschwitz ganharia o seu em 30 de junho de 1943. Eles permaneceriam ativos até os últimos dias.

Himmler não estendeu sua concessão aos judeus, que estavam lá com o propósito de morrer, menos que trabalhar. Eram prisioneiros alemães e eslavos que estavam nas duas pontas da cama. Judias, apesar de certas histórias que hoje são muito contestadas, também não foram alistadas. A única mulher que participou do programa e não era alemã ou eslava foi uma prisioneira política holandesa.
O plano era destinado aos trabalhadores especiais dos campos. Eram sobretudo prisioneiros alemães por crimes comuns, servindo de kapos, seguranças internos, ou em funções na indústria química I.G. Farben, instalada em Auschwitz III. Segundo o historiador Robert Sommer, menos de 1% da população aprisionada visitou os bordéis nos campos.

Piotr Setkiewicz, diretor do Centro de Pesquisas do Museu de Auschwitz, afirma que os administradores punham “um enorme valor na existência desse tipo de instituição no campo e, como sua correspondência indica, tratavam isso como um fator central em aumentar a produtividade dos prisioneiros”.

Os que visitavam eram os que recebiam prêmios por superarem cotas de produção. Esse dinheiro também servia para comprar cigarros, alimentos e outros privilégios. Os 15 minutos no bordel custavam 2 reichsmarks. Parte ia para a mulher, parte para o campo. Um prisioneiro que quisesse participar do programa precisava colocar o nome numa lista.

No fim do dia, no pátio onde recebiam ordens, tinha seu nome chamado publicamente. Era então levado ao Bloco 24, a Frauenhaus (casa das mulheres), como era chamada eufemisticamente. Antes de terem acesso à prisioneira, eram postos nus diante de um médico, que besuntava seus pênis com pomada antisséptica. Alguns recebiam injeções.

Era oficialmente proibido, mas alguns oficiais alemães também frequentaram os bordéis, subornando os responsáveis. É de imaginar que tivessem uma atitude bem diferente da dos prisioneiros. Nem todos os prisioneiros aceitaram o convite.

“Muitos, especialmente os prisioneiros políticos bem informados, tentavam evitar a exposição a chantagens por parte da SS”, testemunhou o sobrevivente Fritz Kleinman. “Intrigas surgiram entre os clientes do bordel e transferências punitivas e espancamentos foram o resultado das escapadelas dos prisioneiros especiais.”

Decisão forçada 

Laqueaduras como no caso que abre a matéria não eram universais. E, feitas nas condições do campo, algumas terminavam em morte. As mulheres que não eram esterilizadas poderiam terminar grávidas e sofrer abortos forçados, que também podiam acabar em morte.

Uma história contada pela sobrevivente Zofia Bator-Stepien relata que uma moça que ela conheceu se inscreveu imediatamente no programa. “Quando o médico terminou de examiná-la, perguntou se ela fazia a menor ideia de para onde estava indo. Ela disse que não, mas ouviu que ela ganharia muito pão.”

O médico também avisou: “Pense cuidadosamente sobre isso, porque, mesmo que isso te dê uma chance de sobreviver a Auschwitz, você pode querer ser mãe no futuro, e isso não será possível”. Ao que ela respondeu: “Não quero ser mãe. Só quero pão”.

E isso nos leva a um ponto central: a questão de muitas das mulheres terem sido voluntárias, de que há relatos, como outro caso contado por Zofia Bator-Stepien, delas à vontade com o cargo, desfilando em roupas de luxo e maquiagem pelo campo, e inclusive tentando continuar quando dispensadas.

“É impossível falar em livre-arbítrio quando você leva em conta as condições em que elas eram forçadas a tomar essa decisão”, registrou a sobrevivente Nanda Herbermann (1903-1979) em seu livro-testemunho Der Gesegnete Abgrund (O Abismo Abençoado).

Nanda, uma católica presa por divulgar material antinazista, foi forçada a cuidar do bloco de prostitutas em Ravensbrück. Ou, como define Insa Eschebach: “Sei que pensamos sobre isso por uma perspectiva diferente, mas, para muitas delas, foi uma decisão muito simples: era ou o bordel e a sobrevivência ou a câmara de gás”. 

As relações com prisioneiros podiam ser amigáveis. Frau B., um dos casos lembrados numa exibição recente do Centro Ravensbrück, afirmou que eles tendiam a ser respeitosos. “Estavam presos por anos e ficavam felizes em terem qualquer contato humano”, afirmou.

Ela lembrou que, vez ou outra, a sessão se limitava a uma conversa. B. também comentou sobre a vigilância dos guardas. “Estávamos tão dessensibilizadas que simplesmente pensávamos: ‘Que se dane, morram de olhar, malditos’.”

Mas nem sempre os olhares eram por voyeurismo. E essa é uma outra parte da perfídia dessa história. Os prisioneiros do triângulo rosa eram observados não apenas por guardas mas por médicos especialmente designados.

Cerca de 100 mil gays foram presos pelos nazistas e, desses, entre 5 mil e 15 mil foram mandados para os campos de extermínio. Não se sabe quantos sobreviveram, mas o número é provavelmente bem baixo.

O triângulo rosa marcava um prisioneiro para atrocidades homofóbicas pelos guardas e outros prisioneiros. Há casos de SS brincando de tiro ao alvo com seus triângulos cor-de rosa. A eles eram dados trabalhos dos mais extenuantes.

E tudo isso não era simplesmente pela ideia de extermínio. Mas de procurar uma “cura gay”. O trabalho extenuante era parte do “tratamento”. Vários sofreram com experimentos feitos com hormônios, outros foram castrados.
E, em Auschwitz, Himmler em pessoa ordenou um experimento mais “psicológico”: sexo forçado com as trabalhadoras do Bloco 24, uma vez por semana. Não é preciso entrar em detalhes para entender como foi uma experiência traumática para os dois lados.

Fracasso

Do ponto de vista mais cínico e prático possível, o programa dos bordéis foi um fracasso. “Por tudo o que descobri, não funcionou”, diz Sommer. “Pouquíssimas pessoas estavam em condições físicas de realmente usá-los.”

Não há dados, mas historiadores como Sommer e Isa acreditam que a maioria das prostitutas, dado simplesmente não estarem passando fome, sobreviveu ao período no campo.

Mas, a essas, restaria um injustificável estigma para o resto da vida. “Não sabemos de nenhuma que tenha sido compensada pelo que passou”, afirma o historiador. “É importante que essas mulheres recebam de volta parte de sua dignidade.”

Aventuras na História

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