Ouvir uma obra da juventude de Beethoven
e logo depois outra da maturidade é um choque. Poucos compositores
evoluíram tão espetacularmente. Mozart vinha fazendo o mesmo, mas viveu
21 a menos e não alcançou o romantismo. Beethoven alterou sua linguagem
de tal forma que acabou por tornar-se a própria transição da música do
período clássico para o romântico. Isto deu-se certamente por uma
necessidade interna, mas fatores externos também o influenciaram.
A vida de Ludwig van Beethoven
(1770-1827) mostrou-se tão adequada a romances e filmes que as lendas em
torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes
criando paradoxos. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para
popularizá-lo e para que fosse lamentado. Victor Hugo dizia que sua
música era a de “um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse
talvez reduzisse o tom de piedade. Beethoven era uma pessoa
absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos
de arrogante – e tinha perfeita noção de quem era e do que
representaria.
Também não foi uma pessoa fácil. Em seus
anos de aluno, Beethoven utilizava harmonias que eram consideradas
inadmissíveis. Quando lhe diziam que eram estranhas, perguntava: “Quem
as proibiu?”. Há um fato muito curioso em sua formação. Desde cedo o
compositor teve uma noção muito clara daquilo que lhe faltava: conhecer
literatura. Ele sabia que seu talento poderia naufragar sem um arcabouço
cultural. Com entusiasmo, ele atirou-se à leitura de Homero,
Shakespeare, Goethe e Schiller. Pensava que só assim – e tendo bons
professores de composição – poderia ser o que tinha planejado para si:
tornar-se o Tondichter da Alemanha, o poeta dos sons de seu país.
As obras escritas antes de seus 30 anos
obedeciam e traíam seus mestres. Apesar de respeitar as estruturas
aprendidas, já são claros os procedimentos expressivos que utilizaria
nas fases seguintes – os temas curtos e afirmativos, os súbitos
silêncios, o uso simultâneo de graves e agudos do teclado, a primazia do
ritmo. O seu “classicismo vienense” era muito pessoal. É
tradicionalmente aceito dividir a vida artística de Beethoven em três
fases, mas prefiro dividi-la em quatro. A primeira começa com a mudança
para Viena, em 1792. Uma fase leve e ousada como Mozart.
Nove anos depois, em 1801, Beethoven
afirmou não estar satisfeito com o que compusera até então, decidindo
tomar um “novo caminho”. Tudo parecia levá-lo ao épico e, em 1803, surge
o primeiro grande fruto: a Sinfonia Nº 3, Eroica. A obra seria dedicada
a Napoleão Bonaparte — Beethoven tinha admiração por ele e pelos ideais
da Revolução Francesa. Porém, quando o corso autoproclamou-se imperador
da França em maio de 1804, Beethoven foi até a mesa onde estava a
sinfonia já pronta, pegou a primeira página e riscou o nome de Napoleão
com tanta força que ficou um buraco no papel. Perdeu Napoleão.
O ciclo épico iniciado
pela Eroica seguiu com obras verdadeiramente espantosas e originais, que
cantavam a força da humanidade, a paixão pela liberdade e a vitória do
espírito humano. Vieram a Sinfonia Nº 5, a Nº 6, Pastoral, as
sonatas Waldstein e Appassionata, assim como o Concerto para Piano Nº 5,
chamado Imperador. Eram músicas intensas, triunfantes e românticas.
Ao final da primeira década do século
XIX, começa a terceira fase. Ele já era reconhecido como o maior
compositor de sua época, e cometeu algumas, digamos, obras polêmicas.
Entre 1813 e 17, passou por uma crise criativa, levado talvez pela
progressiva surdez — ele começara a se comunicar com as pessoas por
gestos ou por escrito — ou pela perda das esperanças matrimoniais. Mas
seguiu compondo: escreveu a pior das músicas em A Vitória de Wellington.
“É uma estupidez”, admitiu, mas o público saudou o triunfalismo da
obra. Era o músico nacional e tudo o que fizesse era adorado.
Sua sorte foi ter conhecido a Condessa
Maria Erdödy, grande e inspiradora amiga que conseguiu retirá-lo da
letargia. Ele recomeçou, em 1818, a compor lentamente as que seriam,
talvez, suas maiores obras. À Condessa foram dedicadas as duas
esplêndidas Sonatas para Violoncelo e Piano Op. 102.
E começou a quarta fase, a mais
vanguardista. Há obras muito populares neste período — dentre elas a
Sinfonia Nº 9 —, mas há também aquelas que, de tão perfeitas, serviram
de base para muitos compositores que vieram depois. A irrepetível
sequência perfeita e revolucionária começou com a Sonata para Piano, Op.
106, Hammerklavier. Beethoven teve que prestar explicações a seus
contemporâneos, que não a entenderam, o que gerou mais algumas de suas
deliciosas respostas mal humoradas. “Não pensei no pianista quando a
escrevi”. “Não gostam agora? Gostarão mais tarde. Não escrevo para
vocês, escrevo para o futuro.”
As sonatas seguintes, de Op. 109, 110 e
111, são inacreditáveis, considerando-se a época em que foram compostas.
A Sonata Op. 111 gerou um dos mais belos momentos da literatura de
todos os tempos: a aula do Prof. Kretzschmar em Doutor Fausto, de Thomas
Mann. O imaginário professor Kretzschmar dá uma aula sobre o tema “Por
que Beethoven não escreveu o terceiro movimento da Sonata Op. 111”. A
ideia de Mann nasceu quando um descuidado pianista contemporâneo de
Beethoven perguntou sobre o motivo da inexistência do mesmo. A resposta
do compositor foi típica: “Não tive tempo de escrever um!”.
O futuro lhe abriria as portas como fez
para poucos. No início do século XX, o escritor Romain Rolland
acreditava ser o último beethoveniano. Não poderia estar mais enganado.
Bartók, Xenakis, Varèse, Shostakovich e Schnittke foram decisivamente
influenciados. Além disso, Beethoven tornou-se o mais popular dos
compositores, o elo perfeito para aqueles que raramente ouvem a música
erudita pudessem adentrar em um novo mundo.
Em 1824, surge a Sinfonia nº 9, Op.125,
para muitos sua obra-prima. Pela primeira vez na história da música é
inserida a voz humana em uma sinfonia. Os anos finais de Beethoven foram
dedicados quase que exclusivamente à composição de quartetos de cordas.
Os últimos quartetos são talvez suas obras mais profundas e
visionárias. Elas foram encomendados pelo príncipe Galitzin, que pagou
50 ducados por cada. Pagou mesmo? Beethoven recebeu o pagamento apenas
do primeiro. Embora o príncipe russo não negasse a dívida, os quartetos
restantes só foram pagos aos herdeiros de Beethoven em 1852, 25 anos
após sua morte.
Na opinião de Beethoven, o quarteto —
que fora inventado por Haydn — era a manifestação mais alta da arte
musical e ele utilizou-o como veículo de expressão daquilo que parecia
ser um projeto de renovação de sua música.
O Quarteto Op. 132 é absolutamente
pessoal, como se vê nas anotações na partitura. Beethoven passara um
inverno sem complicações de saúde, mas a primavera trouxera-lhe
moléstias pulmonares, digestivas e intestinais que o debilitaram muito, a
ponto de deixá-lo de cama por vários dias. Sua situação foi comentada
musicalmente na obra. Na partitura, há anotações como “ação de graças de
um convalescente”, “sentindo novas forças” ou “Tu (referindo-se a Deus)
me devolveste a vontade de viver”. Trata-se de um caso único: um
compositor comentar problemas tão terrenos em música. Normalmente,
quando se fala na dor que uma música representa, em geral são dores da
alma, dificilmente sofrimentos físicos.
Assim, a vida de Beethoven foi
finalizada por obras de um tipo nunca ouvido antes. Seus contemporâneos
tinham dificuldades de entender aqueles enormes quartetos, às vezes com
sete movimentos.
Beethoven foi o primeiro romântico que
fez questão de ter liberdade de expressão. Se foi condicionado por algo,
foi pelo equilíbrio, pelo amor à natureza e pelos grandes ideais
humanistas. Inaugurou a tradição do compositor que escreve música para
si, não seguindo os desejos de um mecenas ou a moda. Em uma época em que
tanta gente é chamada de gênio, convém conhecer um que verdadeiramente
merece ser chamado assim. Beethoven é do tamanho de Shakespeare,
Cervantes, Bach, Homero, Dante e de outros poucos, bem poucos.
Milton Ribeiro
Texto publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo
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