O ótimo A vida invisível de Eurídice Gusmão
é o mais brasileiro dos livros. Ou é um retrato tão fiel, mas tão fiel
da condição feminina no Brasil nos anos 40 e 50, que boa parte das
posturas e ações foram identificadas por mim como sendo das gerações
passadas de minha família. Se a ação do livro se passa nos anos 40, eu
nasci em 1957 e convivi muito com a família de Cruz Alta (RS) de minha
mãe. E, meu jesus cristinho, a sociedade cruz-altense dos anos 60 era a
do Rio de 20 anos antes. Havia a mulher decente, a fofoqueira, a que era
obrigada a trabalhar (coitada), a puta, todas elas com algo em comum, a
infelicidade.
Ou era igual em todo o mundo, tanto que o livro já foi multitraduzido, tendo versões em inglês, francês, alemão, etc.
Este livro de Martha Batalha é de 2016 e
cumpriu um longo trajeto. Não obteve editora no Brasil, sendo aceito
ANTES em outras línguas. Acabou na maior editora brasileira, virou filme
e agora faz crescente sucesso, após a autora ter sido finalista do
Jabuti por com seu segundo livro, Nunca houve um castelo.
Este livro conta a história de Eurídice,
uma mulher dotada de boa dose de inteligência que poderia ter sido o
que quisesse, mas que acabou como dona de casa. Tudo o que ela planejava
fazer de forma independente acabava em um não do pai, da mãe ou do
marido. E ela tenta tocando flauta, escrevendo um livro de receitas,
iniciando uma carreira como costureira, lendo e escrevendo, tudo. A
resposta de quem manda nela é sempre um não.
Ela tem uma irmã muito bonita chamada Guida, que também sofre, mas em outro âmbito.
Martha Batalha escreve com mão segura e
algo ousada ao fazer com que outras histórias subitamente se atravessem
na narrativa. Essas interrupções são tão longas que a gente pensa, como
se lesse o Manuscrito de Saragoça, de Jan Potocki: será que ela
voltará à história que estava contando antes? Mas todas estas histórias
que surgem servem para mostrar a vida sofrida de outras mulheres e para
dar potência à história de Eurídice.
Então, A vida invisível de Eurídice Gusmão
fala sobre vidas de mulheres submetidas a um machismo sistêmico. O
marido de Eurídice, por exemplo, é um bom homem que chega a um alto
cargo no Banco do Brasil. só que ele acha que a mulher deve ficar em
casa tratando dos filhos e das refeições, já que traz dinheiro mais do
que suficiente. E, protegendo e “melhorando” a vida de sua família, ele
diz não às novidades da mulher. Para a sociedade da época, parece o
homem ideal, só que não… Deste modo, sendo “bom, cuidadoso e correto”,
ele impõe à Eurídice uma rotina desesperadora, que destrói sua
felicidade, criatividade e brilhantismo.
Restou-lhe o silêncio de uma atividade muito conhecida.
Não pensem em um livro feminista que grita, pensem em um bem delicado e muito, muito forte e convincente.
Recomendo muito!
Milton Ribeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário