sábado, 9 de novembro de 2019

Cantigas de escárnio e de maldizer





No meu tempo de estudante secundarista, a cadeira de Português examinava várias formas antigas de literatura portuguesa, nomes e títulos que eu decorava de má vontade – pra que diabo eu tinha de estudar Cancioneiro d’Ajuda, Gil Vicente, Paio Soares de Taveirós?... Eu queria que o professor falasse de Guimarães Rosa, Carlos Drummond, Cecília Meireles, Dalton Trevisan, que eu estava descobrindo justo naquela época.
Não foi tempo perdido porque muita coisa me ficou. Como o gênero poético intitulado “Cantigas de Escárnio e de Maldizer”, que já na época eu achava mais interessante do que as “Cantigas de Amor e de Amigo”, onde tudo era muito previsível, muito bonitinho e me cheirava a mera conversa-pra-levar-pra-cama.
Pelo que me lembro (e fui checar) as cantigas de escárnio eram meio na base da ironia, podiam ser cantadas na frente do “alvo” porque permitiam duas interpretações. Já as de maldizer eram cantigas de insulto mesmo, de passar-o-rodo.
Quando mergulhei de ponta-cabeça no estudo da Cantoria de Viola, reencontrei esse modo de versar nos desafios acalorados onde estrofes inteiras, páginas inteiras, torrencialmente, martelam sem descanso uma metralha de invectivas, todas centradas no tema Você Não Presta.


Como cita Luís da Câmara Cascudo, em Vaqueiros e Cantadores, este verso de Daniel Ribeiro cantando com Manuel Ninô:
Capanga do beiço arrebitado,
fateiro, bode da mão torta,
maldizente, machado que não corta,
preguiçoso, cachorro arrepiado;
negligente, luzório, acanalhado,
lambareiro, frei-sabugo, pela-bucho,
língua preta, bigode de capucho,
barulhento, sufocante e abafado,
sem vexame, pateta debochado,
sapo-sunga, faminto, rosto murcho.
Em termos de maldizer, a Cantoria de Viola não fica atrás da lírica trovadoresca, e criou estilos específicos de maledicência rimada. Sem perder de vista a ironia presente nas “canções de escárnio”, com dribles retóricos que permitiam ao poeta insultar o contendor através de si mesmo.


O livro de Mário Lago Chico Nunes das Alagoas,  sobre o grande glosador alagoano, cita um desafio em que o poeta Pedro Basílio teria dito:
Sou rico, sou potentado,
sou um poeta de direito,
sou um homem de respeito,
sempre fui considerado
como um cantador honrado
desde o norte até o sul.
Até o barão de Traipu
me daria confiança.
Vivo cheio de esperança...
Eu sou melhor do que tu.
E o “Rouxinol da Palmeira”, conhecido pelo seu temperamento sarcástico e irreverente, devolveu a glosa:
Sou ladrão de mandioca
sou a lama de um barreiro
sou um tipo cachaceiro
sou embuá, sou minhoca
sou como sapo na toca
sou baba de cururu
sou poleiro de urubu
sou chocalho sem badalo
sou um ladrão de cavalo...
mas sou melhor do que tu.
Insultar é uma arte refinada, garantia Jorge Luís Borges em seu ensaio (pequenino, mas rico de exemplos) “Arte de injuriar” (em História da Etermidade, 1955). E para isto tanto vale o sarcasmo educadíssimo quanto a ofensa brutal em plena cara.


O que me traz à mente o forró clássico de João Gonçalves, “Resposta”, segundo dizem dedicado aos críticos musicais cariocas que zombaram dos seus elepês:
Bicho dos quadris de trinchete
banguelo da venta de bolão
um dia tu entra no cacete
pra não ser metido a gostosão...
Bicho do sangue de brocotó
tu tivesse a ousadia de criticar meu forró...
Disse que eu sou mau compositor
que bom mesmo é discoteque que xote não tem valor...
Vai tomar banho na cacimba!
Quando tu levanta os braços
ninguém aguenta a catinga...
João Gonçalves, chamado O Rei Do Duplo Sentido, é bem capaz de falar num sentido único, quando não quer deixar dúvidas.
Chamar na chincha os detratores e os críticos é um esporte preferencial de muitos compositores, e nem Bob Dylan resistiu a essa tentação. “Positively 4th Street” (1965), uma das canções mais virulentas de seu repertório, é um acerto de contas com muitos inimigos que fez na sua subida para o sucesso:


            Você tem muita cara-de-pau em dizer que é meu amigo:
quando eu estava por baixo, ouvi suas risadinhas.
É muita cara-de-pau dizer que quer me dar a mão:
você só quer estar do lado que está por cima. (...)
Eu sei por que motivo você fala de mim pelas costas:
eu já andei com essa turma com quem você anda. (...)
Eu queria que por um instante você fosse eu,
só para sentir que merda é olhar pra você.
E por aí vai. Dylan chegaria a suplantar essa música como “Idiot Wind” (1975):
É um vento idiota que sopra, sempre que você abre a boca,
você é uma idiota, baby,
é um prodígio que ainda saiba como respirar.


Uma característica da cantiga de maldizer é que ela é sempre dirigida a um “tu” ou “você”. Não é alguém dizendo à distância “Fulano não presta”: é dizendo, de dedo na cara, “você não presta”.
Como John Lennon com seu eterno parceiro/adversário Paul McCartney, em “How do you sleep” (1971):
Você vive rodeado de caretas
que lhe consideram um rei,
e dá um pulo quando sua mulher
diz qualquer coisa.
Como é que você consegue dormir de noite?!


John e Paul dariam entrevistas depois minimizando essas vergastadas, mas o fato é que a pressão de compor, a pressão de gravar, a necessidade de descarregar as tensões pessoais, tudo isso leva muitos compositores a criarem essas verdadeiras bombas atômicas.
E nem precisa ser algo dirigido a uma pessoa específica. Basta se referir a um tipo de pessoa, infelizmente tão comum, aquele que Gilberto Gil chamou de “Pessoa Nefasta”, num dos seus melhores discos (Raça Humana, 1984):
Tu, pessoa nefasta,
vê se afasta teu mal
teu astral que se arrasta tão baixo no chão.
Tu, pessoa nefasta
tens a aura da besta
essa alma bissexta, essa cara de cão!
Reza! Chama pelo teu guia!  (...)
Pede que te façam propícia
que retirem a cobiça, a preguiça, a malícia
a polícia de cima de ti...
Basta ver-te em teu mundo interno
pra sacar teu inferno: teu inferno é aqui! (...)
Não é a mera cantiga de maldizer resmungada pelas costas. É uma surra terapêutica, sem pretensão de superioridade por parte de quem fala, apenas a descrição sem meias palavras, sem rodeios, sem anestesia.


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