segunda-feira, 15 de julho de 2019

Nada além de uma ilusão

  (ilustração: “São Jerônimo e o Anjo”, Simon Vouet)
 

Tem coisas nesta vida que eu acho que somente as prostitutas enxergam com clareza.

Não me refiro àquelas garotas de programa blasés de Beverly Hills, às louronas turbinadas de 50 mil dólares o fim de semana. Penso naquelas moças meio cabírias, meio irmas-la-douce, meio santas-rosinhas-do-mangue, meio terezas-batistas-cansadas-de-guerra. As da vida real.

Penso nisso porque estávamos conversando sobre literatura. Escritor chorando-pitanga é um espetáculo divertido, porque cada um quer contar a maior vantagem e a desgraça maior, ao mesmo tempo. Meu livro não vendeu nada, meu editor não me compreende, minha capa ficou um presepe, a livraria botou na estante errada, o crítico disse que o livro de fulano é melhor que o meu... E por aí vai.

E eu me lembrei de uma matéria sobre prostituição urbana que li muitos anos atrás, num daqueles jornais da imprensa nanica, não sei se foi no “Versus” ou no “Movimento” ou em outro.

O repórter estava entrevistando uma prostituta jovem, e ela explicou que ia para o puteiro logo de manhã, porque o movimento lá começava cedo.

-- Eu pego uns dez ou doze fregueses durante o dia – explicou ela – aí de noite eu volto pra casa, meu namorado tá me esperando, aí eu dou umazinha com ele e vou dormir.

O repórter disse:

- Mas depois de transar o dia inteiro você ainda tem disposição pra transar, quando chega em casa?

E ela respondeu:

- Ah... é a ilusão do amor...

Eu guardei essa frase como quem guarda um cheque nominal, cheque aliás que já descontei tantas vezes e permanece com saldo. O que nos leva a continuar publicando livros que só nos dão trabalho, “muído”, dor de cabeça, contrariedades e até prejuízos? O que nos leva a continuar insistindo nisso? É a ilusão do amor.

Não existe nada mais abstrato do que o público que lê um autor, qualquer um. É um conjunto de individualidades que nunca formam um coletivo, que raramente se agrupam sob um mesmo teto, que não se conhecem entre si, e que ao se conhecerem (“Puxa vida, você também lê Valêncio Xavier?!...”) tanto podem cair nos braços uma da outra quanto observar-se com ciúme e desconfiança pelo resto da vida.

Se escritor já é uma criatura que não presta, avalie leitor.

E no entanto é para alegrar essa irmandade desunida que o escritor gasta sete sapatos de ferro correndo de editora em editora, submetendo-se às brincadeirinhas da imprensa popularesca em troca da glória duvidosa de uma resenha com foto, comparecendo a programas de TV que nunca o viram mais gordo e onde ele é coagido a informar quem é e o que faz, e ir embora mais cheio de dúvidas existenciais do que chegou.

É a ilusão de quem em algum rincão remoto do país o seu gracejo produziu uma risada, que a sua cena de suspense eriçou pelos, que ao ler a sua reflexão crítica algum leitor ou leitora fechou o livro, marcando o lugar com o dedo, ergueu o olhar para a parede e murmurou: “Puta que pariu, é exatamente isso”. Isso para um autor equivale a um passaporte para o céu; mas que não passe disso.

Se for para passar, que tal um cheque ou depósito mensal, do tipo “faço isso para garantir que o senhor continue escrevendo”? O autor se derramaria em gratidão diante dessa bênção protegida pelo anonimato. (E não estou fantasiando – aconteceu com Tchaikóvski.)

O que nos move é a ilusão de que esses fantasmas ambulantes que compram nossos livros irão nos mandar, de Coromandel ou de Ituiutaba, pelo menos uma postagem telepática de agradecimento por uma frase bem escrita, um diálogo na-mosca, uma descrição vívida, uma idéia estimulante, um tipo inesquecível. Mesmo quando não seja bem o caso.

A maioria dos autores, sei muito bem, estremeceria de terror ante a idéia de que algum desses leitores viesse bater à sua porta para agradecer. “Não! Agradeça lá de longe!”, diria ele, porque se sente mais à vontade amando a humanidade à distância, de onde é mais fácil retocar suas qualidades e maquiar seus defeitos. Ele ficaria mais que satisfeito com um email, aquelas mensagens na linha do curto-demais-o-que-o-senhor-escreve.

Por mais afável que ele pareça à primeira vista, um autor é em geral alguém que se sente melhor entre poltronas, luminárias e silêncio do que entre gente que o cobre de elogios.

Um escritor é, mal comparando, como uma mulher que se veste elegantissimamente mas tem vergonha de ficar nua à vista alheia, porque sabe o corpo que tem. O autor quer a ilusão de ser amado, por suposto; mas ele não quer ser amado pela criatura quasímoda que sabe ser, mas pelo que escreve, e que são as coisas boas que ele tem para dar ao mundo.

E é por essa mesma razão que o escritor cobra para escrever.

Sei que muitos escritores fazem questão de escrever de graça, dar palestras de graça, ministrar aulas de graça, participar de eventos de graça, e assim por diante. Estão no seu direito, mas não têm o direito de se horrorizar quando a gente diz: “Faço, mas faço por mil reais”.

Uma vez me ligaram de uma grande publicação brasileira, de circulação nacional, com centenas de empregados e milhões de reais em faturamento. Queriam um texto assim-assim, para uma matéria com a temática tal-e-tal (muito interessante, aliás), com umas duas laudas, etc e tal. Eu falei que faria, e disse meu preço para isso, 500 reais.

O funcionário refugou:

- Olha, seria uma colaboração gratuita, mas que vai te dar muita visibilidade, vai divulgar teu nome, teu trabalho... Nós não temos verba para pagar por esse texto.

Eu me senti tão miserável que pedi:

- Então faz o seguinte. Me paga 50 reais, e tudo bem.

- 50 reais? – espantou-se ele. – Por que?

E eu disse:

- Ah... é a ilusão do profissionalismo... 
 
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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