No meu tempo de escola primária, algumas crédulas e ingênuas pessoas, a
quem dávamos o respeitoso nome de mestres, ensinaram-me que o homem,
além de ser um animal racional, era, também, por graça particular de
Deus, o único que de tal fortuna se podia gabar. Ora, sendo as primeiras
lições aquelas que mais perduram no nosso espírito, ainda que, muitas
vezes, ao longo da vida, julguemos tê-las esquecido, vivi durante muitos
anos aferrado à crença de que, apesar de umas tantas contrariedades e
contradições, esta espécie de que faço parte usava a cabeça como
aposento e escritório da razão. Certo era que o pintor Goya, surdo e
sábio, me protestava que é no sono dela que se engendram os monstros,
mas eu argumentava que, não podendo ser negado o surgimento dessas
avantes mas, tal só acontecia quando a razão, pobrezinha, cansada da
obrigação de ser razoável, se deixava vencer pela fadiga e mergulhava
no esquecimento de si própria. Chegado agora a estes dias, os meus e os
do mundo, vejo-me diante de duas probabilidades: ou a razão, no homem,
não faz senão dormir e engendrar monstros, ou o homem, sendo
indubitavelmente um animal entre os animais, é, também indubitavelmente,
o mais irracional de todos eles. Vou-me inclinando cada vez mais para a
segunda hipótese, não por ser eu morbidamente propenso a filosofias
pessimistas, mas porque o espetáculo do mundo é, em minha fraca
opinião, e de todos os pontos de vista, uma demonstração explícita e
evidente do que chamo a irracionalidade humana. Vemos o abismo, está aí
diante dos olhos, e contudo avançamos para ele como uma multidão de
«lemmings» suicidas, com a capital diferença de que, de caminho, nos
vamos entretendo a trucidar-nos uns aos outros.
José Saramago, in 'Cadernos de Lanzarote (1993)'
José Saramago, in 'Cadernos de Lanzarote (1993)'
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