quinta-feira, 9 de junho de 2016

Como encontrar pessoas dentro de casa

Um singelo experimento filosófico de devolucão das pessoas a elas mesmas 

Quero sugerir uma estratégia bem simples para encontrar pessoas. Talvez esse experimento possa ser expandido. Mas em princípio, é um pré-projeto, um conjunto de apontametos iniciais, que pode ser usado com o objetivo de encontrar pessoas dentro de casa. Pensei em desenvolvê-lo tendo em vista que, desde a invenção dos aparelhos, da máquina de fotografar ao celular, passando pela televisão e pelo computador e do sempre crescente incremento das tecnologias, temos preferido as máquinas às pessoas e não conseguimos conversar com as pessoas com quem vivemos. Há muitos motivos para isso. Neste momento vou apenas sugerir o experimento que poderá ser avaliado por quem quiser como útil ou inútil.

O proponente do experimento aguarda críticas e sugestões.

Primeiro passo: abordar as pessoas que estão na sala

Nesse momento, uma ou mais pessoas estão na frente da televisão aí na sala da sua casa. Vamos levar esse texto que você lê agora até elas. Se as pessoas não estiverem na frente da televisão, mas diante do computador, não envie para elas por email ou pelo messenger. Vá até elas e pergunte se poderiam parar um pouco o que estão fazendo e ler esse pequeno texto com você. Talvez seja difícil porque você vai precisar imprimir, caso não tenha um computador portátil. A outra alternativa é chamar as pessoas e ler aqui mesmo, nessa tela diante da qual você está agora. Vamos ver se você consegue essa pequena adesão das pessoas da sua casa. Não desista, é importante para o próximo passo.

Segundo passo: ler com atenção buscando uma consciência da voz

Ler é legal. Pensa só. Por meio da leitura, as pessoas prestam atenção na voz do outro e, no caso de quem lê, na própria. A voz parece algo não corpóreo, embora saibamos que a voz seja física. Mas ela não parece física. Ela é invisível, mas todo o nosso senso das coisas materiais passa pelo visual. Isso é cultural. Parece, no entanto, natural. Você já ouviu falar que os sentidos enganam, não é? Talvez mais porque nos acostumamos com as coisas e quando nos acostumamos é difícil ver e ouvir. É difícil sentir em geral. E também é difícil pensar. Então, sem ver ou ouvir, sem sentir nem pensar, é fácil “naturalizar”.

Claro que a voz também engana. Claro que ouvimos mal, claro que estamos acostumados às mesmas vozes. Pense nas pessoas na frente da televisão ouvindo aquela mesma voz monótona do mesmo apresentador de sempre, com as mesmas notícias de sempre. Aquelas notícias que não dizem muita coisa, mas que servem para passar o tempo e nos dão as respostas que, imaginamos, sejam suficientes para levar a vida. No fundo, não estamos escutando, assim como não estamos vendo. As imagens sempre aparecem como se fossem verdadeiras. Isso é do seu ser. Mesmo que sejam manipuladas, ficam com a aura da verdade. Colam em nós como verdades inquestionáveis.

É preciso saber isso. Ficamos tão acostumados com as coisas que estamos habituados a ver e ouvir que perdemos as paisagens, sejam visuais, sejam sonoras, ao nosso redor. Estamos ali, meio anestesiados pelas coisas que acostumamos a ouvir. Assim com as pessoas na sala que é preciso chamar para ouvir.

Então, você chega e pede para os seus familiares, aqueles que partilham com você o lar, um espaço muito especial de convivência, que eles leiam com você. Eles não ouvem. Estão ligados na televisão ou no facebook. Você insiste. Escutam seu chamado com um pouco de receio. Pensam que é uma bobagem, que você ficou chato, quer atenção. Uma atenção que eles não tem para dar. De tanto você insistir, de repente a chave muda e eles passam a esperar por uma grande revelação.

Eles param pra te ouvir entre o tédio e a curiosidade e você lê para eles.

Terceiro Passo:  enfrentar a estranheza, do gesto, dos outros, do texto e do silêncio

As pessoas na sala estão acostumados a pensar de um jeito meio extremista: ou isso ou aquilo. Ou as coisas são chatas ou são emocionantes. Você que se aventurou a chamá-los, sabia que podia ser estranho fazer uma coisa dessas, afinal, vivemos na lógica do “cada um na sua”, que uns chamam de individualismo. Cada um no seu quadrado como diz a música. Mas você está a fim de uma pequena aventura doméstica, no reino paralelo da alteridade da casa. Dá para entender que você resolveu enfrentar a estranheza familiar, o estranho, que há algo de inquietante acontecendo entre você e as pessoas ali naquela sala. Que talvez isso tenha sido provocado por um texto que resolveu se intrometer, como se estivesse vivo, na vida dos outros.
Enquanto você chama os seus familiares, você mesmo pensa que há algo fora do comum nesse chamado. A questão sobre esse gesto estranho, mais que um gesto, uma ação estranha, vem fácil quando fixamos um pouco o pensamento nisso que parece “estranho”.

Então, temos que colocar uma lupa para olhar para isso. Para o estranho. O estranho do seu gesto entrou em cena pelo texto, mas antes havia outra coisa estranha. São, portanto, dois estranhamentos. Um que serve para nos aproximar, outro que serve para nos afastar.

Um dos telefones dos presentes dá um sinal de alerta de mensagem, o outro toca, e você não atende e não permite que o outro atenda, pois o telefone quebra a estranheza libertadora que estamos tentando produzir.

Quarto passo: verificando a presença

Você não tem a sensação de que alguma coisa se perdeu desde que ficamos o dia inteiro colados em aparelhos tecnológicos? Da televisão ao celular, passando pelo computador, você não tem uma sensação de ansiedade, de angústia, até mesmo de ausência.  As pessoas na sala ao lado, essas que você chamou para ler o texto, não te parecem estranhas? Tão estranhas como a ação doméstica que você promove agora como se fosse um experimento cientítico?

Não parece que você perdeu o acesso a essas pessoas? Mais fácil teria sido mandar esse texto por email, pelo whatsapp, postar no facebook e esperar que ela compartilhasse sem ler?

Então você pede que a pessoa leia um pedaço do texto.

E espera para ver se ela se desintegra ou não.

Quinto passo: verificando a própria presença

Não parece que perdemos alguma coisa entre nós? Que não estamos no lugar certo?

A impressão de que nesse mundo virtual perdemos a sensação de presença não se torna comum? De que perdemos a presença, a nossa própria e a dos outros?

Será que o que perdemos não foi o corpo? Podemos nos perguntar como se deu o processo de extraviamento dos nossos corpos. Podemos perguntar se realmente estamos em nós mesmos, ou se estamos fora de nós? Não será por isso que há tanta gente hoje fazendo coisas muito bizarras em termos éticos e políticos? Em termos discursivos também? O que as pessoas dizem, o que professam, o modo como falam, dão a impressão de “alienação”, no sentido mais técnico e antigo que os psiquiatras davam aos loucos. Esse falar ventríloquo, no entanto, não tem a ver com loucura, tem relação direta com a impotência do pensamento, com a impotência do sentimento, com a impotência da ação. Isso que faz as pessoas ficarem sentadas na frente da televisão recebendo tudo isso de uma vez: pensamentos prontos, emoções programadas, ações dirigidas sempre pelo mesmo ordenamento que é comprar (o que for possível, conforme sua classe social).

Nesse estado de importência pessoal, cada um pensa, sente e age como se vivesse sem os outros. Como se estivesse sozinho no mundo. Sem a conexão com os outros, perdeu-se também a conexão consigo mesmo.
Se você ainda está lendo para os seus amigos ou familiares, tem uma prova de que está presente.
Pode seguir ao passo seguinte.

Sexto passo: a descoberta da linguagem  

Não conseguimos fazer conexões com os outros fora da linguagem. Linguagem é, aliás, uma palavra estranha também, muito simples e muito complicada. Muito clara e muito nebulosa.
A linguagem é imensa e infinita.

Quando falo em linguagem estou querendo dizer algo sobre tudo aquilo que usamos para nos comunicar, nos expressar e nos informar. Ler, por exemplo. Faz parte da linguagem. É um dos seus atos mais preciosos.
A impotência do pensamento, da emoção e da ação constroem-se, inevitavelmente, como impotência da linguagem. Isso é fácil de comprovar quando percebemos que não sabemos o que falar, ou quando falamos demais, ou quando começamos a falar por falar, sem ter nada a dizer. Quando começamos a usar a linguagem como se fosse uma coisa que nos dá lucro (como no facebook onde juntamos “curtidas” como moedinhas num cofre) ou serve para violentar os outros.

Ler, sobretudo, romances e ensaios, poesias e filosofia, ajuda a ampliar o horizonte da linguagem. Faz a gente crescer por dentro, mais ou menos isso.

Aprendemos essas impotências com esses mecanismos altamente empobrecedores da linguagem que são os meios de comunicação quando eles deturpam sua função de comunicar e informar e passam a manipular. Coisa que se aprende vendo televisão ou ficando no computador o dia todo sem parar para ler um livro. E sem parar para conversar de verdade com alguém. Há pessoas que são como livros, surpreendentes.

Sétimo passo: preparar para o fim do procedimento

Sei que não há tempo pra isso: conversar de verdade com alguém. Mas temos que construir esse tempo, sob pena de perdemos a nós mesmos no meio do caos da linguagem manipulada do mundo.

Por isso, sugiro que você vá até a sala e chame mesmo os seus para ver se eles ainda estão ali. Verifique se eles não tem a mesma sensação estranha de que está faltando alguma coisa entre vocês.
Talvez essa coisa sejamos nós mesmos. Cada um.

Mas não diga isso para as pessoas agora. Elas podem ficar assustadas, elas podem se sentir ofendidas ao saberem que o que falta são elas mesmas. E não queremos ofender ninguém. Ofender não nos levaria a lugar nenhum, muito menos a um contato que ainda seja vivo, antes de termos sido programados para viver segundo regras postas por telas e seus funcionários dedicados que manipulam a linguagem, a informação, a comunicação, a expressão.

Para fechar o singelo experimento que fazemos com a linguagem nesse momento, vamos pedir aos que nos ouviram que desliguem televisões e computadores e que abram um livro. Se sobreviverem ao estranhamento por uma noite, é  sinal de que ainda pertencem a si mesmos.

Você que propôs o experimento, encontrou uma pessoa e foi capaz de devolvê-la a si mesma.

Não sei como se certifica isso, que tipo de qualificação isso gera, mas me parece que vale, para começar, pela simples descoberta.

Márcia Tiburi

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