terça-feira, 28 de junho de 2016

Uma escola longe de nós: sobre o golpe na educação e as ocupações

O Golpe na educação começou em 1964. A repressão aos professores, àqueles que tinham um pensamento crítico, progressista ou simplesmente livre, foi violenta. Da cassação à tortura, os professores foram humilhados de todas as formas. Sobreviveram, mas sob as piores condições.
Como professora de filosofia, eu sempre disse aos meus alunos que eu só podia falar o que falo, tratar de conteúdos críticos nas nossas aulas, porque não estávamos mais na ditadura.
Bom lembrar que a filosofia se tornou disciplina obrigatória no governo Lula depois de o governo FHC ter evitado que ela retornasse ao currículo do Ensino Médio.
É sempre bom saber quem apoia e de quem não apoia a filosofia na escola, porque ela é uma parte essencial da formação das pessoas. A filosofia é importantíssima em qualquer escola em qualquer tempo. Não é a toa que, dentre as disciplinas humilhadas pelo sistema repressor, pela ditadura, a filosofia ficou sempre entre as mais humilhadas. Justamente por dar muito poder às pessoas. Por deslocar o sentido do poder, da força para a reflexão. O poder do pensamento, da análise, da crítica, do questionamento que, por isso mesmo, ameaça os poderosos e seus sistemas de verdades dogmáticas e prontas.
Desde que estamos vivendo esse novo golpe, esse golpe muito baixo, desde que o autoritarismo usurpou o governo, estuprou a democracia e a lançou em coma num quarto escuro da história, eu penso no que acontecerá com os professores de filosofia que inevitavelmente fazem política ao lecionar em nome do pensamento lúcido e crítico.
Quem não entendeu que a filosofia é uma política do pensamento, não entendeu nada de filosofia. Mas isso é assunto para outro momento.

Professores e escolas humilhadas

A profissão de ensinar, da qual qualquer pessoa poderia se orgulhar, é tratada desde a ditadura militar, essa que ressuscita agora sem ajuda de militares, como motivo de vergonha para muitos. Os professores são humilhados pelo capitalismo por meio de salários cada vez mais baixos. Sabemos que uma das armas do extermínio capitalista é o salário das pessoas. A dignidade fica ameaçada quando, num contexto em que a materialidade da vida está ameaçada por falta de condições, não se tem, por exemplo, dinheiro para pagar a conta de luz e é preciso comprar um livro.
A educação é tratada desde a ditadura militar em sua aliança com o capitalismo como algo supérfluo, como mercadoria, não como um direito das pessoas, sobretudo dos jovens, mas como um luxo que pode adquirir aquele que pode tem dinheiro para pagar. Espera-se de quem quer ser professor que seja herói ou que desista e procure coisa melhor para fazer. No senso comum não se diz de um professor que é alguém que não trabalha? É uma brincadeira de mau gosto, mas ela expressa a estupidez do senso comum, cruel como o sistema econômico e político que o administra por meio dos pensamentos prontos.
Infelizmente, muitas pessoas são lavadas por pensamentos prontos. Elas perderam a noção de sociedade. Perderam a noção de ética e de política. Não imaginam que um projeto transformador de país precisa de um projeto de educação transformador. (Desvalorizar o trabalho intelectual é essencial para que a burrice vença de vez. Bom lembrar que o trabalho intelectual é um trabalho concreto como outro qualquer, exige esforço físico e psíquico, inclusive e muitas horas de dedicação e produz materialidades. Mas isso também é tema para outra hora)
A repressão é promovida por indivíduos que agem em nome do sistema econômico e político. Aquilo que para o indivíduo autoritário em sua versão fascista é uma espécie de prazer em humilhar, para o sistema é certeza de lucro a curto, médio e longo prazo. O sistema conta com esse sacerdote, essa pessoa que adere a ele. Mas o projeto é sistêmico, não podemos culpar indivíduos.
Nesse contexto, o que se projeta é a privatização almejada pelas economias neoliberais. Para quem não sabe o que é neoliberalismo, uma palavra muito usada e pouco analisada, podemos usar uma definição básica: neoliberalismo é um projeto de rebaixamento de tudo o que é ético e político ao econômico, de tudo o que é humano à mercadoria. No neoliberalismo a sociedade tem que viver em competição, e os que tem poder econômico devem vencer. Não há nenhum problema em ser vencedor, e nenhum problema em ser vencido do ponto de vista neoliberal. Por que os vencidos economicamente não contam no projeto de lucro geral. O problema é deles se morrerem de fome, sem escola, sem saúde. Para que fique tudo bem, a ideologia que se deve implantar é a do individualismo e da meritocracia. E cada um deve acreditar que tem o mérito e a força – ou que não os tem e desistir logo – e que pode ser melhor do que os outros. Deve também pensar que direitos são inúteis e que o que realmente importa é o vigor pessoal e a capacidade de competir.
Falar disso cruamente não seria bom para o neoliberalismo. Por isso, muito se irritam com esse tipo de fala. O povo poderia se revoltar se soubesse que está marcado para morrer aos poucos. Convenhamos, é uma morte lenta a que se produz pela desigualdade. A morte rápida também ajuda. A morte de jovens negros e de indígenas, de pessoas trans, de travestis, de mulheres, faz parte da programação de matança geral dos indesejados para o sistema.
No nosso caso ela começou há muito tempo e persiste até agora.
Além disso, o Brasil sempre foi colônia e não perdeu esse dever inconsciente de servir ao estrangeiro que hoje fica claro nas formas de entreguismo econômico cada vez mais radical. Mas sobre isso também é preciso falar com mais tempo.


A educação ocupada

No meio disso tudo, os estudantes secundaristas em 2016 por todo o Brasil nos fazem ver uma luz no fim do túnel. O que eles nos mostram é algo simples: se a educação foi abandonada agora ela precisa ser ocupada.

Ontem, como hoje, os estudantes movem-se contra o golpe. Tentam salvar a educação salvando as escolas. Para isso, usam uma tática pacífica muito atual chamada ocupação.

A tática da ocupação é corporal, territorial e geopolítica.

Ora ocupamos aquilo que queremos questionar, ora ocupamos aquilo que queremos salvar. A escola nunca foi um paraíso, mas a ocupação dos estudantes, em qualquer tempo e lugar, tem o poder de ressignificar a educação para eles mesmos, para os professores, para a sociedade como um todo.

Ontem fui à Ocupação da Escola Clélia Nanci, em São Gonçalo. Escolhi ir até lá porque era longe e fora dos circuitos mais acessíveis. A ocupação é sempre geopolítica e é normal preferir acessos mais fáceis. Mas a educação é também uma metáfora e uma “escola longe de nós” é mais ainda. Precisamos nos aproximar e para isso é preciso deslocar.

Eu quis estar lá. Espero que eu tenha contribuído com aqueles estudantes heroicos que lutam por sua escola, por sua instituição tão longe de quaisquer holofotes, longe de atenções, ocultados pela grande mídia que atualmente faz o papel anti-educativo de desinformar.

Lá na Ocupa Clélia tivemos uma aula de filosofia geral e de filosofia feminista com estudantes interessados e atentos. Éramos poucos e, felizes, realizamos o diálogo filosófico. Para mim, inesquecível.

Márcia Tiburi

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