quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O formidável enterro da última quimera

Você era a mais bonita das cabrochas desta ala. Aos vinte e poucos anos, era natural que o mundo se desenrolasse a seus pés. Linda, inteligente e charmosa, você podia se dar ao luxo de viver dias de Zelda Fitzgerald, sendo poetisa às terças, bailarina às quintas, fotógrafa aos sábados sem provocar suspeitas de esquizofrenia. Pouco importava o que fizesse, dinheiro ou falta de companhia nunca eram problemas dignos de nota. A mística de sua linda juventude se misturava à imaturidade da sua obra com uma leveza e charme desajeitado que sempre fez das crianças e filhotes algo tão fascinante.

Mas como filhotes e crianças, um dia você também cresceu. À medida que deixou de caber nas roupas que cabia e perdeu a capacidade de encher a casa de alegria, tudo o que sobrou de seu gigantesco potencial foi o legado. Mas que legado?

Quem te viu, quem te vê. Enquanto você se considerava eterna, a festa continuou e o nível de quem não era tão espetacular quanto você subiu. A quarta-feira de cinzas trouxe o insuportável peso da realidade que não a cultua mais. Quem não a conhece não pode mais vê-la pra crer, quem jamais a esquece não pode reconhecê-la.

A velha música do Chico Buarque (e o ainda mais antigo poema do Augusto dos Anjos) são extrememente atuais. Não por mostrarem a melancolia da sambista que deixou o morro ou o desgosto de uma vítima de ingratidões variadas, mas por chamarem a atenção para o número cada vez maior de princesas que acreditaram na fantasia e não compreendem porque o príncipe encantado nunca veio. Ele simplesmente não existe.

Sob alguns aspectos, a crise europeia e americana se parecem com o perfil de muitos profissionais competentes e brilhantes, perdidos entre os ideais e valores de sua juventude, os livros, blogs e receitas diversas de auto-ajuda e enriquecimento rápido e a dura realidade de um mercado pragmático.

Boa parte das crises sociais, econômicas e ambientais que vivemos hoje vem de uma mentalidade estabelecida em uma época mais lerda e estável. Nela, quem era rico permaneceria rico, e quem era pobre só enriqueceria por milagre, casamento ou no final da vida. Típica de um tempo em que as coisas pareciam durar para sempre, como em uma eterna juventude ou infância, se é que há diferença entre elas. Na Europa, a terceira geração de quem sofreu muito na guerra está cheia de irmãs de Cinderelas, acostumadas desde crianças a se sentirem belas, poderosas, imperialistas e invencíveis enquanto abusam de suas criadas em uma decadência tão gritante que não se incomoda de ser chamada de Euro Trash e tomar o último gole de champagne enquanto o Titanic afunda. Nos EUA, a evasão de escolas e a importação de talentos deixa claro que a indústria do entretenimento, vista por muitos como instrumento de dominação global, acabou lobotomizando boa parte de seu próprio público.

O resultado é uma quantidade cada vez maior de crianças crescidas que dizem fazer um pouco de tudo, vociferando obviedades para o espelho de seus podcasts e videocasts enquanto não conseguem um emprego que sustente suas opiniões "independentes". Cansados da Ingratidão, essa pantera, um dia acabam por sossegar o facho e aceitar o primeiro emprego oferecido. Não há punks com 50 anos de idade.

É difícil se reconhecer neste espelho que envelhece cada vez mais rápido, por isso tantos se agarram a um retrato de Dorian Gray que os remeta a anos dourados, se recusando a deixar a faculdade, a sair da casa dos pais, a se casar, a ter filhos ou a aceitar um emprego que sustente o sonho, buscando realizá-lo a longo prazo.

Religiões fazem sucesso porque a vida é uma grande profissão de fé. Emprrendedores de diversas origens sociais só crescem porque se submetem a um regime de trabalho voluntário de apavorar muita sweatshop. Não há nada de novo nisso, praticamente todo império começou financiado por muito suor e pouca saliva.

O sucesso fascina, mas só o trabalho entrega. O digital, ao acelerar os processos, tornou essa relação ainda mais evidente. Quem acredita em sua esperteza e genialidade incomuns é bom se acostumar à lama que o espera.


Luli Radfahrer
Ph.D. em Comunicação Digital pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP, onde é professor há 18 anos.

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