terça-feira, 27 de setembro de 2011

Fronteiras sobre a escrita (2)

Arte de Daniel Lim


Este texto serve para uma espécie de louvor dos escritores invisíveis, sem os quais não haveria acumulação de ideias nem a tradição onde germinam os que ascendem à fama. Mas falemos também dos pintores invisíveis.

Sempre tive o fascínio pelas imagens e, a certa altura da minha vida, tomei mais atenção ao gosto pela pintura. Ainda não tínhamos mobília em casa, e um dia passámos (eu e a minha mulher) por um antiquário e ali vimos um quadro que, para ela, evocava uma certa nostalgia da sua terra. O antiquário viu dois pelintras interessados e aproximou-se.

O quadro mostrava uma paisagem de montanha, no inverno, 28 por 40 centímetros, com pinceladas apressadas mas precisas, cores belíssimas e técnica perfeita; certamente, era de um pintor estrangeiro, pois a obra tinha sido comprada fora do país; o antiquário admitia que fosse francês, anos 20 ou 30 do século passado, mas podia ser centro-europeu. “Também gosto muito e tenho um quadro do mesmo autor”, explicou o antiquário, “procurei por todo o lado, mas não consegui identificar a assinatura”. Como era um pintor desconhecido, fez-nos um preço acessível, e adiámos a compra da mobília. Durante algum tempo, as visitas sentaram-se em cadeiras de cozinha e ali, na parede branca, brilhava uma aldeia de montanha, nuvens de tempestade, um friso de neve, os ramos grotescos de uma árvore em primeiro plano.
Não tem qualquer valor comercial, mas nunca me cansei de o olhar. E ao fundo, lá está, o rabisco de quem o pintou. Quem seria?

Algures na minha memória, persiste uma informação que devo ter lido numa fonte recomendável. Ela surge com aviso de máxima credibilidade, embora por vezes pareça fantasia. Nessa fonte esquecida e que nunca mais consegui recuperar, dizia-se que na passagem do século havia em Paris algo como 30 mil pintores. Mais uma vez, como uma parte de mim resiste, não sei se incluía os pintores de paredes ou se havia algum incentivo fiscal bizarro.

O facto é que Paris atraía gente de todo o mundo e tinha certamente centenas de escolas de pintura. Talvez aquele número contabilize vários anos. Mas se admitirmos que por volta de 1900 passaram em Paris 30 mil artistas, os quais tiveram acesso à melhor informação técnica da época, convivendo com outros pintores em rede, no meio de boémias, bailaricos e aulas, difusão de ideias e profusão de estilos, então é fácil admitir que todo esse maravilhoso mosaico de imagens não deu qualquer fama à maioria dos seus criadores. Em cada país, desse período, haverá um punhado de famosos. Nos museus de todo o mundo, talvez umas centenas. Se somarmos galerias de arte, colecções privadas, será possível chegar a mil pintores da época, talvez dois mil. Exigirá muita cultura. De resto, temos assinaturas misteriosas, artistas esquecidos. E as obras que as guerras não destruíram, atribuídas a artistas cujo nome se perdeu para sempre.

E, no entanto, os pintores formados nesta explosão de criatividade, e que trabalharam no primeiro terço do século, revolucionaram a arte da pintura. E sem ebulição, sem a efervescência do número, nunca há génios. O fenómeno é semelhante ao das bombas nucleares: não existe explosão sem se atingir uma determinada massa crítica.

E assim é com as ideias e a literatura. As palavras perdem-se no ruído do mundo. Os escritores falam para a surdez geral da humanidade, na ilusão de que podem ser a faísca em brasa, ou de que transformam a sociedade, movendo-a um milímetro, que é quase tanto como faz o terramoto. Mas, na realidade, uma literatura é um somatório e ele será tanto mais forte quanto maior for a diversidade dos criadores. Se fizerem todos a mesma abordagem, teremos o deserto. Pelo contrário, se houver liberdade criativa, a libertação de energia pode ser enorme.

Num blogue onde se escreve habitualmente sobre literatura, Horas Extraordinárias, um post da autora levou-me a este vídeo, de uma entrevista de Gilles Deleuze. O filósofo francês fala do período cultural "pobre" que atravessamos e dá três razões para o actual declínio da literatura. No blogue de Maria do Rosário Pedreira deixei um comentário sobre o post, criticando a ideia de que o mal da literatura seja o facto de haver tantos jornalistas a escrever romances. Uma simplificação sem sentido. Sempre houve escritores interessados na actualidade e que escreveram grandes peças de jornalismo. Tenho um livro com reportagens da Primeira Guerra Mundial que inclui textos, entre outros, de HG Wells, Conan Doyle, Colette, Edith Warthon. Na Segunda Guerra Mundial, os correspondentes incluem nomes como Vassily Grossman, Curzio Malaparte, Ernest Hemingway ou John Steinbeck. George Orwell foi ao mesmo tempo jornalista e escritor, um dos melhores. E, claro, é preciso citar Dino Buzzati.

Deleuze observa o declínio da literatura, que atribui ao best-seller e à invasão em livro da escrita apressada e pouco criativa dos jornais. A meu ver, a melhor parte da entrevista está no início, onde o filósofo fala dos períodos pobres da cultura, incluindo o actual. Não é mal nenhum atravessar o deserto, mas é terrível crescer nele, diz o autor (e cito de cor). A desertificação da criatividade, os escritores invisíveis que nunca conheceremos (e alguns, talvez, o novo Beckett) representam um empobrecimento geral da cultura que, para nós, contemporâneos, é quase impossível detectar, pois ninguém pode reparar no que não aparece.
É interessante que Deleuze não mencione a política. Muitos autores de hoje parece que escrevem para o umbigo, preferencialmente sobre trivialidades que não incomodem. Isso, claro, também é uma atitude política. E pode estar ligado à invisibilidade dos escritores. Criou-se o mito de que não devem ter opiniões políticas, pois a arte não serve para mudar o mundo e deve ocupar as estratosferas. A destruição que Estaline fez da literatura russa, mencionada por Deleuze, está agora o mercado a fazer da literatura do futuro. Parece-me que as razões são as mesmas: a cultura é demasiado imprevisível, pouco controlável, sempre uma ameaça. Ela deve ser dócil e definida pelos poderes; pode ser irreverente, mas não mais do que isso. E obedece às leis do mercado, que são as leis da maioria, dos consumidores, dos grafismos e da publicidade. As leis da televisão.

Não podemos conhecer verdadeiramente o que nunca existiu ou aquilo que nunca vimos ou de que só tivemos um relance. Muitas vezes lembro-me de duas cenas de filmes de Federico Fellini. Numa delas, de Roma, a entrada abrupta de oxigénio numa câmara subterrânea descoberta por arqueólogos destrói rapidamente frescos romanos que tinham estado isolados da atmosfera exterior. Vemos as imagens a desaparecer, como se derretessem, enquanto assobia a entrada do ar. É como nos filmes de horror, sabemos que os heróis não podem escapar à morte. Noutra cena, em A Cidade das Mulheres, um coleccionador afirma que a grande arte é tipicamente produzida nos períodos decadentes. Fellini era um autor que fazia grande arte e queria dizer que vivia num período de decadência. No que se refere ao cinema italiano, isso é evidente: ele foi um dos últimos.

O triunfo do mercado tem um custo elevado para a cultura, a começar pela massificação. A globalização também é uma ameaça à biodiversidade. Os livros, claro, não vão morrer, pelo contrário, há cada vez mais títulos, embora muitas vezes pareça a diversidade dos supermercados, com a sua abundância de 150 marcas de sabonetes, todas com embrulhos diferentes e conteúdo igual. E também se pode dar o caso da travessia do deserto chegar ao fim e haver vales verdejantes do outro lado. A pressão pela novidade, a obsessão pela beleza jovem, o desprezo pela lentidão e a pressa da moda, tudo isto faz parte do mundo em que vivemos, feito de distracções, de telemóveis a tocar. E era sobre esse mundo que me competiria escrever. Sem uma razão especial.

Perguntaram ao alpinista George Mallory por que motivo ia subir ao Everest. Ele encolheu os ombros e respondeu: “Porque está ali”. Mallory morreu em 1924, nessa mesma expedição. Parece que chegou ao topo e que teve a pouca sorte de apanhar uma tempestade rara. Mas é sempre assim, a sorte abandona a maioria dos que tentam e o que verdadeiramente importa é saber que se fez caminho. Quando morreu, talvez por desgosto, o poeta António Machado tinha no bolso um papel onde escrevinhara o último verso. Lia-se com nitidez: “estes dias azuis e este sol de infância”.

O resumo de tudo o que procuramos.


Por Luís Naves

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