terça-feira, 19 de julho de 2011

Pequenas fatalidades

Outro dia eu estava no chuveiro e assim que fechei a torneira escutei os três bips indicativos de que a secretária eletrônica havia acabado de gravar uma mensagem. Quando pude ouvi-la, as palavras eram incompreensíveis. Todas. Voltei a fita várias vezes, aumentei o volume, colei o ouvido ao aparelho: nada. Os ruídos e chiados da interferência só aumentaram. Fiz o contrário, não deu certo. Era uma mensagem meio longa, a pessoa queria dizer alguma coisa. A idéia de que alguém tentara entrar em contato comigo e uma circunstância qualquer o impedira a princípio me irritou e aos poucos me inquietou. Quem? A voz atrás dos ruídos eletrônicos era de homem, tom vagaroso. E se alguém estivesse pedindo ajuda e eu falhava involuntariamente? E se fosse um convite para trabalho nestes tempos bicudos? Alguém me deve dinheiro: quem sabe se dispunha a pagar? Ou explicava, coitado, por que ainda não podia pagar? Quem sabe um convite para falar no Canadá? Teria eu sido premiado em algum daqueles sorteios de fim de ano? Mais impressionado ficava a cada tentativa de decifrar a mensagem: a voz já não soava apenas vagarosa, pareceu-me que se arrastava. Meu Deus: um suicida desistindo? Fechei porta e janela, isolei-me dos barulhos, ouvi e reouvi. Julguei perceber algo como "Igor", e só. Fiz um esforço de memória, não conhecia nenhum Igor.

Pequenas fatalidades nos acontecem todos os dias e são parte da trama da própria vida. Talvez sejam feitas do mesmo intrincado tecido das grandes fatalidades, aquelas que nos encaminham para o avião que vai cair. Mas as pequenas nos permitem sorrir. Quando você está com pressa, a fila de carros ao lado sempre anda mais rápido. Se você muda de faixa, a outra é que anda. Você está sozinho em casa, entra no banho e o telefone ou a campainha da porta tocam. Você acaba de encher o tanque e no posto adiante a gasolina está bem mais barata. Você começa a dar ré no carro e materializa-se um pedestre atrapalhado passando atrás. Um dia desses fui ao oftalmologista e dilataram-me as pupilas. Eu havia esquecido os óculos escuros em casa e fatalmente o dia resultou claríssimo, sol cruel, prédios e muros de um branco alucinado, tudo feria os olhos.

A idéia de uma engrenagem movendo todas essas coisas, as pequenas e as grandes, tem alimentado ficções e reflexões séculos afora. "O que tem de ser tem muita força", resumiu Clas e as grandes, tem alimentado ficções e reflexões séculos afora. "O que tem de ser tem muita força", resumiu Clarice Lispector. Um escritor angustiado como o checo Franz Kafka construiu contos inquietantes partindo de pequenos acasos. Fatalidades formam exércitos de pessimistas e de otimistas.

Entre os primeiros, ganharam espaço os aforistas da lei de Murphy, aquela cuja primeira máxima é "se alguma coisa pode dar errado, ela vai dar errado". A lei foi sintetizada por um engenheiro aeronáutico que procurava eliminar todas as possibilidades mecânicas de acidente de vôo. Ela fez sucesso, ganhou frasistas, até sentimentais: "Se você encontra a garota de seus sonhos, ela já encontrou o garoto dos sonhos dela". E humoristas: "Se alguma coisa que podia dar errado parece que está dando certo, é óbvio que você cometeu algum engano". Ou: "Não é possível criar alguma coisa à prova de trapalhões, porque os trapalhões são criativos".

Dois dias depois do telefonema, eu ia subindo a rua onde moro e encontrei um rosto ligeiramente conhecido:

– Oi! Eu sou o Igor.

Luz!

– Deixei uma mensagem na secretária do senhor.

Era o rapaz de uma agência de turismo que estava me procurando para devolver um cheque preenchido incorretamente.


Ivan Ângelo

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