terça-feira, 7 de setembro de 2010

Um carneiro em minha casa

Eu tinha um parente senador que, depois de ter vencido novas eleições, veio passar uns dias em minha casa de Isla Negra. Assim começa a história do cordeiro.

Acontece que seus eleitores mais entusiastas vieram para festejar o senador. Na primeira tarde da festa assaram um carneiro à moda do campo do Chile, com uma grande fogueira ao ar livre e o corpo do animal enfiado num assador de madeira. A isto chamam asado al palo, que é celebrado com muito vinho e queixosas guitarras criollas.

Outro carneiro ficou para a cerimônia do dia seguinte. Enquanto não chegava a sua hora, amarraram-no junto de minha janela. A noite toda gemeu e chorou, baliu e se queixou de sua solidão. Partia a alma escutar as modulações daquele carneiro, ao ponto que decidi me levantar de madrugada e raptá-lo.

Metido num automóvel levei-o a cento e cinqüenta quilômetros dali, à minha casa de Santiago, onde não o alcançassem as facas. Mal entrou, pôs-se a pastar vorazmente no melhor lugar de meu jardim. As tulipas o entusiasmaram e ele não respeitou nenhuma delas. Ainda que por razões espinhosas, não se atreveu com as roseiras. Mas devorou em troca os goiveiros e os lírios com estranho prazer. Não tive remédio senão amarrá-lo outra vez. E de imediato se pôs a balir, tratando visivelmente de me comover como antes. Senti-me desesperado.

Nesse ponto se entrecruza a história de Juanito com a história do cordeiro. Acontece que por aquele tempo havia começado uma greve de camponeses no sul. Os latifundiários da região, que pagavam a seus rendeiros não mais de apenas vinte centavos de dólar por dia, terminaram a pauladas e prisões com aquela greve.

Um jovem camponês teve tanto medo que subiu num trem em movimento. O rapaz se chamava Juanito, era muito católico e não sabia nada das coisas deste mundo. Quando passou o cobrador do trem examinando as passagens, ele respondeu que não tinha, que se dirigia a Santiago e que pensava que os trens eram para que a gente subisse neles e viajasse quando precisasse. Trataram de desembarcá-lo, naturalmente. Mas os passageiros de terceira classe — gente do povo, sempre generosa — fizeram uma coleta e pagaram a passagem.

Por ruas e praças da capital andou Juanito com um embrulho de roupa debaixo do braço. Como não conhecia ninguém, não queria falar com ninguém. No campo dizia-se que em Santiago tinha mais ladrões do que habitantes e ele tinha medo que lhe roubassem a camisa e as alpercatas que levava debaixo do braço, embrulhadas num jornal. Durante o dia perambulava pelas ruas mais freqüentadas, onde as pessoas sempre tinham pressa e afastavam com um empurrão este Gaspar Hauser(*) vindo de outro planeta. De noite buscava também os bairros mais concorridos mas estes eram as avenidas de cabarés e de vida noturna e ali sua presença era mais estranha ainda, pálido pastor perdido entre os pecadores. Como não tinha um só centavo, não podia comer, tanto assim que um dia caiu ao solo sem sentidos.

Uma multidão de curiosos rodeou o homem estendido na rua. A porta defronte da qual caiu correspondia a um pequeno restaurante. Levaram-no para dentro e o deixaram no chão. É o coração, disseram uns. É uma crise hepática, disseram outros. O dono do restaurante se aproximou, olhou-o e disse: "É fome". Mal comeu algumas garfadas aquele cadáver reviveu. O dono o pôs para lavar pratos e se tomou de amores por ele. Tinha razões para isso. Sempre sorridente, o jovem camponês lavava montanhas de pratos. Tudo ia bem. Comia muito mais do que na sua terra.

O sortilégio da cidade se teceu de maneira estranha para que se juntassem certa vez, em minha casa, o pastor e o carneiro.

Deu vontade no pastor de conhecer a cidade, encaminhando então seus passos um pouco além das montanhas de louça. Tomou com entusiasmo uma rua, atravessou uma praça, e tudo o deslumbrava. Mas, quando quis voltar, já não o podia fazer. Não tinha anotado o endereço porque não sabia escrever, buscando assim em vão a porta hospitaleira que o tinha recebido. Nunca mais a encontrou.

Um transeunte, com pena de sua confusão, disse-lhe que devia se dirigir a mim, ao poeta Pablo Neruda. Não sei por que lhe sugeriram esta idéia. Provavelmente porque no Chile se tem por mania me encarregar de quanta coisa estranha passe pela cabeça das pessoas e ao mesmo tempo de me jogar a culpa de tudo o que acontece. São estranhos costumes nacionais.

O certo é que o rapaz chegou um dia à minha casa e se encontrou com o bicho preso. Já que eu estava tomando conta daquele carneiro inútil, não me custava também tomar conta deste pastor. Deixei a seu cargo a tarefa de impedir que o carneiro gourmet devorasse exclusivamente minhas flores mas sim que também, de vez em quando, saciasse o apetite com a grama de meu jardim.

Compreenderam-se na hora. Nos primeiros dias ele lhe pôs, só para constar, uma cordinha no pescoço com uma fita e com ela o conduzia de um lugar para outro. O carneiro comia incessantemente e o pastor individualista também, transitando ambos por toda a casa, inclusive por dentro de meus aposentos. Era uma união perfeita, conseguida pelo cordão umbilical da mãe terra, pelo autêntico mandato do homem. Assim se passaram muitos meses. Tanto o pastor como o carneiro arredondaram suas formas carnais, especialmente o ruminante que apenas podia seguir seu pastor de tão gordo que ficou. Às vezes entrava parcimoniosamente em meu quarto, olhava-me com indiferença e saía deixando um pequeno rosário de contas escuras no chão.

Tudo acabou quando o camponês sentiu a nostalgia do campo e me disse que voltava para sua terra distante. Era uma resolução de última hora. Tinha que pagar uma promessa à Virgem de seu povoado. Não podia levar o carneiro. Despediram-se com ternura. O pastor tomou o trem, desta vez com sua passagem na mão. Foi patética aquela despedida.

Em meu jardim não deixou um carneiro mas sim um problema grave, ou melhor, gordo. O que fazer com o ruminante? Quem cuidaria dele agora? Eu tinha preocupações políticas demais. Minha casa andava desordenada depois das perseguições que a minha poesia combativa me trouxe. O carneiro começou de novo a balir suas partituras queixosas.

Fechei os olhos e disse à minha irmã que o levasse. Ai, desta vez eu tinha certeza de que não se livraria do forno!


Pablo Neruda

Do livro "Confesso que Vivi — Memórias", Difel — Difusão Editorial — Rio de Janeiro, 1978, pág. 225, traduzido por Olga Savary.

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