terça-feira, 13 de maio de 2008

Repassando...


"Cachorrinha" morava no interior do Ceará. Tinha 4 anos. Quando o

cheiro de comida se espalhava pelo ar, gemia, sem força, pedindo

comida. Às vezes, ganhava. Outras, levava bronca. Um dia, agentes

sanitários entraram na casa para fazer dedetização. Já no final da

vistoria, um deles escutou um grito fraco, vindo na direção da cama.

Debaixo do colchão, sob várias peças de roupas, estava "Cachorrinha".

Não era um animal, mas uma menina que, desnutrida, estava quase morta.

Sofria constantes ataques de violência física e psicológica por parte

dos pais, que deram a ela o apelido pejorativo. O caso, relatado por

profissionais do Centro de Combate à Violência Infantil (Cecovi), não é

isolado. Nas últimas semanas, o Brasil ficou estarrecido com histórias

de abandono, maus-tratos, infanticídio e tentativa de homicídio contra

crianças. Pais que, em vez de proteger, representam aos filhos uma

ameaça.


Estudos internacionais apontam que, em 70% dos casos, a violência

infantil é praticada pelo pai ou pela mãe. Estatísticas do Sistema de

Informação para a Infância e Adolescência (Sipia), do Ministério da

Justiça, confirmam a tendência. Das 496.398 ocorrências registradas de

1999 a 2005, 50% tiveram os pais como agressores. Depois da violação ao

direito da convivência familiar, os casos mais citados são violência

física e psicológica. Só em 2005, segundo dados preliminares do Sipia,

foram registradas 70 mil ocorrências, o que significa uma média diária

de 189 agressões.


Apesar de reforçar a informação de que o perigo está em casa, o

Sipia não consegue retratar, numericamente, todos os casos ocorridos no

Brasil. O sistema é abastecido pelos conselhos tutelares que, além de

não estarem presentes em todos os municípios brasileiros, nem sempre

recebem denúncias desta natureza.


Embora faltem pesquisas oficiais abrangentes, um diagnóstico

elaborado pelo Laboratório de Estudos da Criança da Universidade de São

Paulo (Lacri/USP), com dados coletados em hospitais, centros de saúde,

SOS Criança, escolas e varas da infância, entre outros locais,

identificou 129.495 casos de violência contra crianças de 1996 até o

ano passado. Dessas, 32,1% eram agressões físicas, 16,1% psicológicas e

0,4%, ou 505 ocorrências, terminaram em morte. Em 2005, foram

registradas 19.245 ocorrências.


Crueldade gratuita.

"Desde que me formei, vejo casos de pais que maltratam os filhos.

Já vi criança que foi jogada na fogueira e na frigideira, com ruptura

de órgãos e traumatismo por causa de chutes e cascudos", relata Lauro

Monteiro, chefe do serviço de pediatria do hospital Souza Aguiar, do

Rio de Janeiro.


Por receber diversos pacientes com sintomas de agressão doméstica,

há 18 anos o médico fundou a Associação Brasileira Multiprofissional de

Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), organização

não-governamental (ONG) que desenvolve programas de combate à violência

infantil.


As causas dos maus-tratos infligidos aos filhos são variadas. "O

principal motivo é cultural. Os pais acham que o castigo físico é uma

forma de educar, mas estão errados", ressalta Maria Leolina Couto

Silva, coordenadora nacional do Centro de Combate à Violência Infantil

(Cecovi), ONG que presta atendimento psicológico e jurídico às vítimas.


A advogada enumera outros fatores: abuso de drogas e álcool,

fanatismo religioso e baixa resistência ao estresse. Segundo ela, de

20% a 30% dos casos de violência doméstica ocorrem quando os pais estão

bêbados ou se drogaram. Maria Leolina também diz que religiões que

interpretam a Bíblia de forma literal pregam o castigo físico para

educar as crianças.


Há casos em que os pais alegaram que maltrataram os filhos porque

"um espírito maligno mandou". Despreparados, outros descontam na

criança, o ente mais fraco da família, seus medos e frustrações. "E são

pessoas normais do ponto de vista patológico", diz. Estudos indicam que

apenas 10% dos agressores têm distúrbios psiquiátricos.


Para Lia Junqueira, coordenadora Centro de Referência da Criança e

do Adolescente (Crea), o atendimento prestado à vítima da violência

deve ser cuidadoso. "Se não houver um atendimento especial, a criança

acaba sendo vítima duplamente da violência", diz.

Maria Leolina Couto Silva, coordenadora nacional do Centro de Combate à Violência Infantil (Cecovi)

Nenhum comentário: