terça-feira, 1 de abril de 2008

A Cama da Baleia


Todos nós temos um rio em nossas vidas onde navegamos no nosso universo de emoções, em alguns planos desfeitos e outras reticências mais. Ora pairamos em nossa calmaria, aportamos em algum porto seguro ou nos deixamos levar em nossas ondas. Alguns desbravadores mais afoitos esmiúçam seus horizontes, buscam terras inabitadas, corações valentes que a vida os fez. Já outros, passam os anos remando num lago manso, enorme, interminável como os seus próprios propósitos.

É certo que também tenho os meus rios, um que habita o meu mais pueril imaginário e aquele outro onde, vez por outra, me denuncia, mergulhando em suas águas. Até já falei dele aqui dia desses e hoje me toma de novo aquela vontade de pular em suas águas em inexoráveis vérticos de saudades. Coisas da boa infância que a puberdade conservou e a maturidade cuida em depositar no nosso mais caro relicário. Nada mais que isso, embora esteja convencido de que, quando os ventos sopram em direção as recordações, águas passadas movem moinhos sim.

E lá vem de novo às reminiscências das traquinagens, as façanhas de moleque, as fugas para suas águas, o beliscar das piadas, o anzol do pescador dançando sobre as águas, a pedra de anil colorindo a limpeza das roupas nas mãos das lavadeiras e uma conta de rosário de recordações que se amolda na lembrança.

Entrementes, me importa agora lembrar de outro aspecto do meu rio. O rio Piancó. As suas cheias, as águas revoltas que, intrépidas, desvirginam suas barreiras num ronco de medo e beleza unidas num só instante, desabrigando a rua de baixo nas madrugadas, subindo a ladeira ao encontro do Grande Hotel num eito d’água de perder de vista.

É Coremas gritando em sangria, chorando as águas do velho Piancó. Foi assim em 1977 e se repete em 2008. Os caminhões, dispostos em fila, recebem as mudanças dos moradores ribeirinhos, em especial os residentes da rua por detrás do açougue, mais conhecida como “rua preta” bem como as famílias da rua de baixo.

Do último caminhão que vi partir, de longe se notava o rol de sua bagagem: uma cama e colchão, dois potes de barro, um abano de palha, quatro lamparinas de pavio, um oratório quebrado com meia dúzia de velas, um rádio ABC, uma fotografia do Flamengo, um quadro da Santa Ceia, uma mesinha, duas cadeiras de balanço e uma preguiçosa, um balaio de palha surrado com um cinturão de couro dentro, duas ancoretas vazias, um cabresto de jumento e um pilão de cumaru encostado. Isso era todo o mobiliário que compunha aquela arribação a deixar a rua de baixo em março de 1977. A cachorra traíra ia amarrada na grade de madeira do caminhão. D. Severina e os dois filhos Tião e Netinho se acotovelavam na boleia.

A beleza do rio contrastava com a cena da breve despedida daquela gente.

Ainda criança, não conhecia o mar. Do alto dos meus nove anos o oceano tinha a vastidão daquelas águas. Para mim, tinha a exata dimensão do meu rio, assim como mensurava os versos do poeta Fernando Pessoa: “É mais livre e maior o rio da minha aldeia.” Só muito depois pude entender o sentido de suas palavras. Somente hoje posso compreender o eco do Piancó como um grito da mais pura expressão de liberdade.

Um outro evento que me chamava muito a atenção nas cheias de Coremas: É que circulava entre os garotos da época a lenda urbana de que, arrombando o “Estevam Marinho”, a baleia que habita suas águas haveria de tomar como leito a nave principal da nossa Igreja do Rosário. Aquilo me consumia os nervos só de imaginar tamanha fatalidade.

E hoje que o rio novamente acorda, grita subindo as suas águas, desabrigando e inundando parte da cidade baixa, me pergunto se já não é hora de ver de novo como anda a cama da baleia disposta na nossa velha e querida Igreja do Rosário.



2 comentários:

Unknown disse...

Historicamente os meses de ABRIL e MAIO são os mais chuvosos, se ainda em Março as águas já chegaram no corredor do grande hotel........

Anônimo disse...

Dito e feito. Alegro-me com fervor em ler o texto "A cama da Baleia".
Quando moleque também participei do processo de disseminação da lenda.
Meus pais já moraram na Rua Preta, e de lá saíram no fim da década de 60 com "água nos peitos"

Em que pese a convulsão social causada com as cheias, aqui do Planalto Central (a mais de mil metros acima do nível do mar) sinto saudades da alagada Pombal.
Tarciso Melo - Brasília - DF