Prisioneiros num gulag: tecnicamente, Nazino não fazia parte do sistema oficial.
Hoje
em dia – ou pelo menos até a pandemia parar o mundo – barcos cheios de
passageiros cruzam corriqueiramente um trecho do rio Ob, no meio da
Sibéria, sem que a maioria dos seus passageiros se deem conta de por
onde estão passando. Talvez uns poucos tenham ouvido seus pais e avôs
comentarem o que aconteceu ali. Mas, se nem eles se lembram, imagine o
resto do mundo.
Já no fim da década de 20 o
regime soviético tinha começado a se revoltar contra inimigos,
imaginários ou não, inaugurando com os kulaks a mania de mandar todo
mundo de que não gostassem para a Sibéria. Mas com as
dissidências internas do regime e a própria insânia inerente ao
socialismo, a paranoia se instalou no regime e pessoas consideradas “desclassificadas e socialmente prejudiciais”, como comerciantes, camponeses que fugiam da fome, “ladrões de galinha”,
ou qualquer um que simplesmente não se encaixasse no esquema de classes
idealizado pelo Partidão ou tivesse deixado seu passaporte em casa,
começaram a ser presas em Moscou e Leningrado, classificados como “parasitas da sociedade” e deportados para algum “campo de trabalho”.
Para
o idealizador do plano, Genrikh Yagoda, chefe da política secreta da
época e alguém que poderia apresentar um programa policial na TV
soviética da época, tudo isso serviria para “purificar” as cidades”.
Mendigos e criminosos seriam mandados para colonizar e subjugar a
Sibéria, enquanto a população local tinha que se virar com a falta de
remédios, empregos, moradia e viver à base de tubérculos e caça. Em 1931, um primeiro experimento foi feito pelo governo soviético: 800 pessoas consideradas “socialmente perigosas”
foram despachadas para um lugar às margens do Ob, onde, sem comida e
emprego, acabaram se revoltando e aterrorizaram a população local até
serem exterminadas pelos nativos.
O
responsável pelo transporte dos “prisioneiros”, conhecido apenas como
Comandante Tsepkov, depois de receber um telegrama de seus superiores
ordenando acomodar “pelo menos 25.000 elementos” na região no início de
maio, respondeu dizendo que conhecia os nativos da taiga e sabia que
eles “eram excelentes caçadores”. Tsepkov esperava, no entanto, receber
fazendeiros, gente especializada com a vida agrária. Quando foi
informado pelos seus superiores que receberia milhares de “criminosos e
desclassificados”, pouco pôde fazer.
Quatro
barcas carregadas com cerca de 5000 “dissidentes”, presos pelos mais
variados e irrelevantes motivos, foram levados rumo ao Oceano Ártico em
balsas usadas para carregar madeira. Depois de quatro dias de viagem e 900 quilômetros Sibéria adentro, em 18 de maio de 1933 os chamados “desclassificados” desembarcaram na ilha de Nazino.
Uma ilha entre aspas. Um pedaço de lama e terra, em plena taiga
siberiana. Um terreno pantanoso e infértil, cujas redondezas eram
habitadas por tribos nativas hostis.
Canibalismo
Os
registros de embarque estavam tão ilegíveis que era quase impossível
conferir a presença dos passageiros. Mas, ao que se conta, 332 mulheres e 4556 homens conseguiram desembarcar, e 27 não resistiram à viagem.
Os que sobreviveram desembarcaram com as parcas forças que tinham, sem
qualquer roupa ou bagagem, e se depararam não só com a paisagem desolada
da ilha, mas também com a falta de qualquer estrutura. Ao ver os prisioneiros, a frase de Tsepkov ficou para a história: “eles que pastem”.
Muitos tentaram fugir, construindo jangadas improvisadas com o que
encontravam pela frente, mas morreram depois de naufragar nas águas
geladas ou fuzilados pelos guardas que o governo soviético tinha
diligentemente designado para cuidar de dissidentes tão perigosos.
A única comida distribuída aos prisioneiros era uma pilha de farinha podre.
À medida que o frio e a neve aumentaram, o Comandante Tsepkov tentou
organizar duas equipes para construir fornos para assarem pães. Quando
questionado por Moscou, ele foi obrigado a responder que “os
indivíduos desclassificados que alegavam conhecer todo tipo de trabalho,
quando foram forçados a trabalhar, não sabiam fazer nada, e
especialmente como construir fornos!”
Depois dois dias, todo tipo de doença contagiosa já tinha se espalhado pela ilha.
A sociedade local rapidamente se transformou numa espécie de
“vale-tudo”, com grupos oriundos das cidades formando máfias para
extorquir a população e, com o tempo, todos os outros habitantes das
redondezas. Com o tempo, até o canibalismo foi “institucionalizado” e corpos passaram a ser encontrados mutilados, sem órgãos, pessoas foram pegas com restos de fígados ou órgãos alheios.
Os
soldados e policiais responsáveis por “cuidar” do lugar acabaram se
rendendo ao absurdo da situação, alguns extorquindo os habitantes para
manter a coisa em segredo, mas muitos apelando aos superiores para
narrar o desespero e detalhar a que ponto os locais tinham chegado.
Tropas foram enviadas para a ilha, mas, em vez de trazer provisões ou
transferir quem estava lá, a intenção dos militares era apenas reprimir
os condenados, dizendo que o “sistema soviético tinha fracassado com eles”.
Enquanto
isso tudo acontecia, Tsepkov, seus superiores e auxiliares se recusavam
a informar os chefões. Talvez por medo de serem eles mesmos
canibalizados por sua ideologia. A dificuldade de se encontrar
guardas dispostos a patrulhar o lugar era tamanha que foi necessário o
uso de informantes entre a população de aldeias locais. Uma pessoa a
cada doze famílias era incumbida de delatar casos de fuga e qualquer
distúrbio da ordem pública, já que não eram poucos os casos de moradores
da ilha que assaltavam as populações vizinhas e tentavam matar seus
animais e roubar seus barcos para fugir.
Enquanto
os documentos da época mostravam uma obsessão em implementar um sistema
utópico de colônias administradas sob um sistema quase militar, o que
se via na realidade era praticamente uma terra de ninguém. Um
emissário do Departamento de Assentamentos Especiais enviado para
inspecionar as condições do lugar ouviu de um dos locais: “Vocês estão fazendo as pessoas passarem fome. Bem, estamos comendo uns aos outros!” O sujeito obviamente foi preso por “propaganda contrarrevolucionária”, por “espalhar alegações envolvendo canibalismo e uma suposta fome causada pelo Estado soviético”. Para as autoridades, os rumores estavam sendo difundidos por dissidentes infiltrados em Nazino para contatar os “elementos desclassificados” que tinham sido enviados para lá, “numa clara demonstração de manipulação política conduzida por elementos externos”.
A
chegada de uma nova remessa de "dejetos humanos" à ilha agravou de tal
maneira a situação em Nazino que, depois de alguns meses, autoridades do
Partido Comunista ordenaram a transferência da população para locais
vizinhos, obrigando a população destes locais a fornecer pão, roupas e
construir acomodações para os “elementos desclassificados”. O Comandante
Tsepkov caiu em desgraça, acusado de “incompetência” e de “violar as
resoluções do Partido com respeito à recepção dada aos assentados
especiais”.
Nas semanas seguintes, a ilha começou a ser gradualmente esvaziada.
Durante o processo de transporte dos prisioneiros, muitos estavam num
estado de tamanha fragilidade que não resistiram à viagem. Outros tantos
simplesmente “desapareceram” após desembarcarem. 157 estavam tão fracos
que foram obrigados a continuar lá. A situação nos novos assentamentos,
no entanto, não era muito diferente da que eles viviam na ilha de
Nazino. Muitos que tentavam fugir eram simplesmente abatidos a tiro
pelos guardas.
Enquanto isso, um comitê de inspeção enviado pelo governo para ilha determinou que o número de mortos em Nazino tinha sido “escancaradamente exagerado por motivos políticos”.
O episódio foi mantido em segredo por décadas, até que, durante a
glasnost, na década de 1980, um grupo ativista de direitos humanos
chamado Memorial trouxe o assunto à tona, entrevistando sobreviventes e
membros da população local. O relato de um desses últimos foi simplesmente estarrecedor: “Eles estavam tentando fugir [da ilha].
Perguntaram para nós: “Onde está a ferrovia? Nunca tínhamos visto uma
ferrovia. Perguntaram: “Para que direção é Moscou? Leningrado? Estavam
perguntando para as pessoas erradas. Nunca tínhamos sequer ouvido falar
desses lugares. Somos ostiaques. As pessoas estavam fugindo, famintas.
Tinham lhes dado um punhado de farinha, que eles misturaram com água
para comer e imediatamente tiveram diarreia. As coisas que vimos!
Pessoas morrendo por toda a parte, matando uns aos outros... na ilha
havia um guarda chamado Kostia Venikov, um rapaz jovem. Ele se apaixonou
por uma garota enviada para lá e estava tentando conquistá-la,
procurava protegê-la. Um dia ele teve que se ausentar e pediu a um de
seus colegas que “cuidasse dela”, mas não havia nada que aquele sujeito
pudesse fazer diante daquela quantidade de pessoas... Agarraram-na e a
amarraram numa árvore, cortaram seus seios, seus músculos, tudo que
puderam comer, tudo, tudo... estavam famintos, precisavam comer. Quando
Kostia voltou, ela ainda estava viva. Tentou salvá-la, mas já era tarde.
Ela tinha perdido muito sangue”.
O
fracasso de Nazino pôs um fim ao sistema de “colonização” dos
territórios de fronteira planejado pelo regime soviético usando
elementos tidos como perigosos e “desclassificados”. Muitos membros
do Partido ficaram chocado ao descobrir que amigos e colegas deles
tinham sido enviados para lá, além de pessoas que não tinham cometido
absolutamente nada de condenável.
Mas
Stalin e seus capangas ainda continuariam mandando por mais algumas
décadas todos aqueles que julgavam indesejáveis para os gulags, onde,
segundo algumas estimativas, cerca de três milhões de pessoas morreram.
Por Rafael Azevedo, especial para a Gazeta do Povo
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