(foto: Evgeny Kornienko)
Um
dos conselhos mais úteis que já ouvi em oficinas de Como Escrever Prosa de Ficção foi: “Imagine tudo, de forma sólida e
coerente, e conte apenas a parte que interessa à sua história”.
É o famoso “contar em 360 graus”. Isso não se refere à temperatura, mas ao raio de visão do autor, que descreve um círculo completo em volta da cena que está narrando, visualiza (=inventa) o que pode estar acontecendo em volta naquele instante, e, quando é o caso, inclui isso na descrição da cena.
Digamos que o autor quer contar uma discussão conjugal entre marido e esposa. Geralmente o autor coloca os dois a sós, na sala de casa. Melhor ainda: no quarto de dormir. Nada acontece em volta, e pronto, ele pode se concentrar somente no que o marido diz, a mulher rebate, o marido ironiza, a mulher reclama, o marido negaceia, a mulher acusa... Como dizia o outro: “e não se avista o fim”.
Cenas assim são excelentes para o teatro (peças para um casal de atores costumam dar lucro), que é A Arte Do Mundo Subentendido. No teatro, o ator pára no centro do palco vazio, faz um gesto largo e diz para a platéia: “Eis o centro de Babilônia, a maior metrópole do mundo!” E a platéia aceita que tem uma babilônia qualquer ali.
Na literatura poderia ser a mesma coisa, mas não custa nada – por exemplo – botar o casal tendo a mesmíssima discussão numa praça onde crianças brincam. Ou na praça de alimentação de um shopping. Ou no escritório onde ambos trabalham. Ou na festa de aniversário da mãe/sogra. Ou num avião durante o voo.
Isso quer dizer que quando escolhemos um desses ambientes somos obrigados a imaginá-lo por inteiro. Aliás, não gostei desse “somos obrigados”, porque na literatura ninguém nos obriga a nada, escrevemos o que quisermos, e só quem nos obriga a fazer algo são nossas idéias preconcebidas, tipo “assim o livro não vai vender”, “isso aqui está profundo demais e os leitores são rasos”, etc.
Digamos então: quando escolhemos um desse ambientes temos a magnífica oportunidade de imaginá-lo por inteiro. De pensar quem são as pessoas que estão ali em volta. (Não é preciso criar uma biografia para cada uma; podem ser personagens de papelão, contando que suas intervenções pareçam ter naturalidade, que suas ações pareçam brotar de dentro delas e não de uma conveniência do autor para poupar-se maior trabalho.)
E assim a discussão do casal parece mais real, porque está tocando outros filamentos do “mundo real”, fazendo-os estremecer. Estão na praça? Aparece uma criancinha inocente: “Por que a senhora está chorando?”, etc. Estão no voo? Um sujeito bonitão se vira no banco da frente: “Ô companheiro, não quero me meter, mas não é assim que se fala com uma mulher.” Estão no escritório? O patrão surge do nada, os dois dão pausa, zeram tudo, sorriem com servilismo, e voltam a se pegar quando ele dá as costas. Estão na festa de aniversário da sogra dela? Ela diz: “Olha, vamos maneirar, sua mãe não tira os olhos da gente”.
É o famoso “contar em 360 graus”. Isso não se refere à temperatura, mas ao raio de visão do autor, que descreve um círculo completo em volta da cena que está narrando, visualiza (=inventa) o que pode estar acontecendo em volta naquele instante, e, quando é o caso, inclui isso na descrição da cena.
Digamos que o autor quer contar uma discussão conjugal entre marido e esposa. Geralmente o autor coloca os dois a sós, na sala de casa. Melhor ainda: no quarto de dormir. Nada acontece em volta, e pronto, ele pode se concentrar somente no que o marido diz, a mulher rebate, o marido ironiza, a mulher reclama, o marido negaceia, a mulher acusa... Como dizia o outro: “e não se avista o fim”.
Cenas assim são excelentes para o teatro (peças para um casal de atores costumam dar lucro), que é A Arte Do Mundo Subentendido. No teatro, o ator pára no centro do palco vazio, faz um gesto largo e diz para a platéia: “Eis o centro de Babilônia, a maior metrópole do mundo!” E a platéia aceita que tem uma babilônia qualquer ali.
Na literatura poderia ser a mesma coisa, mas não custa nada – por exemplo – botar o casal tendo a mesmíssima discussão numa praça onde crianças brincam. Ou na praça de alimentação de um shopping. Ou no escritório onde ambos trabalham. Ou na festa de aniversário da mãe/sogra. Ou num avião durante o voo.
Isso quer dizer que quando escolhemos um desses ambientes somos obrigados a imaginá-lo por inteiro. Aliás, não gostei desse “somos obrigados”, porque na literatura ninguém nos obriga a nada, escrevemos o que quisermos, e só quem nos obriga a fazer algo são nossas idéias preconcebidas, tipo “assim o livro não vai vender”, “isso aqui está profundo demais e os leitores são rasos”, etc.
Digamos então: quando escolhemos um desse ambientes temos a magnífica oportunidade de imaginá-lo por inteiro. De pensar quem são as pessoas que estão ali em volta. (Não é preciso criar uma biografia para cada uma; podem ser personagens de papelão, contando que suas intervenções pareçam ter naturalidade, que suas ações pareçam brotar de dentro delas e não de uma conveniência do autor para poupar-se maior trabalho.)
E assim a discussão do casal parece mais real, porque está tocando outros filamentos do “mundo real”, fazendo-os estremecer. Estão na praça? Aparece uma criancinha inocente: “Por que a senhora está chorando?”, etc. Estão no voo? Um sujeito bonitão se vira no banco da frente: “Ô companheiro, não quero me meter, mas não é assim que se fala com uma mulher.” Estão no escritório? O patrão surge do nada, os dois dão pausa, zeram tudo, sorriem com servilismo, e voltam a se pegar quando ele dá as costas. Estão na festa de aniversário da sogra dela? Ela diz: “Olha, vamos maneirar, sua mãe não tira os olhos da gente”.
A
cena dos dois se relaciona com aquela faixazinha do mundo em volta. Isto serve
inclusive para quando você não sabe mais o que fazer com a cena: você faz com
que alguém venha de fora e os interrompa, trazendo um mote novo. É o velho
conselho de Raymond Chandler: “Quando não souber mais pra onde levar a cena,
faça alguém entrar pela janela de revólver em punho”. Ele falava
metaforicamente, claro. Queria dizer: “Faça a cena ser interrompida por algo
que tenha a ver com a história”.
Chandler tinha outra maneira de descrever isso. No ensaio “The Simple Art of Murder” (1944), ele elogia o romance policial inglês, comparando-o com o norte-americano, por ser mais bem escrito, no sentido de imaginar com mais solidez o ambiente onde ocorre. Ele fala:
Chandler tinha outra maneira de descrever isso. No ensaio “The Simple Art of Murder” (1944), ele elogia o romance policial inglês, comparando-o com o norte-americano, por ser mais bem escrito, no sentido de imaginar com mais solidez o ambiente onde ocorre. Ele fala:
“Há uma sensação mais forte de ambiente, como se a mansão de Cheesecake Manor existisse de fato, e não apenas a parte mostrada pela câmara.”
Por
que essa comparação? Porque nas cenografias do cinema costuma-se construir
apenas a parte que vai ser mostrada pela câmera (ficaria caro demais construir
tudo).
John Jeremy Sullivan conta um episódio curioso sobre isso (“Peyton’s Place”, Pulphead, 2011). Durante algum tempo ele cedeu o casarão “de época” onde morava para uma equipe de TV gravar cenas de uma série. De vez em quando, no dia combinado, ele subia com a família para o andar de cima, a equipe ocupava o vestíbulo e a sala de visitas, gravavam as cenas o dia inteiro, depois desarmavam tudo e iam embora. (E pagavam principescamente.)
John Jeremy Sullivan conta um episódio curioso sobre isso (“Peyton’s Place”, Pulphead, 2011). Durante algum tempo ele cedeu o casarão “de época” onde morava para uma equipe de TV gravar cenas de uma série. De vez em quando, no dia combinado, ele subia com a família para o andar de cima, a equipe ocupava o vestíbulo e a sala de visitas, gravavam as cenas o dia inteiro, depois desarmavam tudo e iam embora. (E pagavam principescamente.)
Sullivan
observa que em certa época percebeu que eles tinha coberto com um papel de
parede diferente toda a parede do vestíbulo bem como da escada que levava ao
1º. andar, e apenas uma parte da parede do corredor de cima. O papel de parede
se interrompia bruscamente a certa altura.
Ele
foi perguntar por quê, uma vez que ficava estranho, metade da parede com papel,
a outra com a pintura. E o cara explicou que eles só precisavam botar papel até
o ponto que a câmera mostrava. Mas (reconhece ele) “quando mostramos a anomalia
eles a corrigiram instantaneamente”.
Não se trata de incompetência nem de excesso de competência. É que quem está filmando pensa apenas no resultado que vai ser apresentado na tela. O resto não existe. (Isso pode ser bom, e pode ser ruim.)
Sullivan conta no mesmo artigo outro episódio. A casa dele servia (na série) como residência de uma moça, Peyton; a série contava a vida dela. Houve um dia em que vieram filmar e toda a filmagem consistia numa cena da moça com o pai dela, uma breve discussão e ela dizendo: “Não era isso que eu queria!”.
Fizeram infinitos takes, com infinitas ênfases. “Não era ISSO que eu queria!”. “Não era isso que EU QUERIA!” E por aí vai. Sullivan descreve a chegada da equipe de filmagem como a chegada de uma pequena cidade que ocupa sua sala de visitas. E comenta: “Não teve outra cena. Quando acabaram, foram embora. Por volta da meia-noite, as barreiras que interditavam o trânsito na rua foram desmanchadas. A cidade foi embora. Existiu apenas para garantir aqueles vinte segundos de cena.”
Quando escrevemos, estamos nos concentrando tanto nos vinte segundos de cena, ou vinte minutos (=a discussão do casal) que é mais fácil fingir que não existe mundo em volta deles. Mas não custa nada parar de escrever por vinte minutos, fechar os olhos, imaginar aquele ambiente (o avião lotado, a praça-de-alimentação quase vazia mas os balcões com garçonetes espreitando à distância, etc.) e, sem tirar o foco de cena, enriquecê-la com alguns contatos com o mundo de fora.
Exemplos? A cena memorável de Harry e Sally: Feitos um Para o Outro em que Billy Crystal e Meg Ryan estão num restaurante, ela finge um orgasmo em voz alta e uma mulher numa mesa próxima chama o garçom e diz: “Eu quero o que ela está comendo”. Sem essa fala, não haveria cena.
Não se trata de incompetência nem de excesso de competência. É que quem está filmando pensa apenas no resultado que vai ser apresentado na tela. O resto não existe. (Isso pode ser bom, e pode ser ruim.)
Sullivan conta no mesmo artigo outro episódio. A casa dele servia (na série) como residência de uma moça, Peyton; a série contava a vida dela. Houve um dia em que vieram filmar e toda a filmagem consistia numa cena da moça com o pai dela, uma breve discussão e ela dizendo: “Não era isso que eu queria!”.
Fizeram infinitos takes, com infinitas ênfases. “Não era ISSO que eu queria!”. “Não era isso que EU QUERIA!” E por aí vai. Sullivan descreve a chegada da equipe de filmagem como a chegada de uma pequena cidade que ocupa sua sala de visitas. E comenta: “Não teve outra cena. Quando acabaram, foram embora. Por volta da meia-noite, as barreiras que interditavam o trânsito na rua foram desmanchadas. A cidade foi embora. Existiu apenas para garantir aqueles vinte segundos de cena.”
Quando escrevemos, estamos nos concentrando tanto nos vinte segundos de cena, ou vinte minutos (=a discussão do casal) que é mais fácil fingir que não existe mundo em volta deles. Mas não custa nada parar de escrever por vinte minutos, fechar os olhos, imaginar aquele ambiente (o avião lotado, a praça-de-alimentação quase vazia mas os balcões com garçonetes espreitando à distância, etc.) e, sem tirar o foco de cena, enriquecê-la com alguns contatos com o mundo de fora.
Exemplos? A cena memorável de Harry e Sally: Feitos um Para o Outro em que Billy Crystal e Meg Ryan estão num restaurante, ela finge um orgasmo em voz alta e uma mulher numa mesa próxima chama o garçom e diz: “Eu quero o que ela está comendo”. Sem essa fala, não haveria cena.
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