sábado, 14 de março de 2020

O gordinho e a menina de rosa

Deixei muitos pedaços por aí. Uso como cola as lembranças que voltam. Com elas, reconstituo minhas andanças. E assim, por exemplo, quando ouço as músicas lentas da infância. Imediatamente, fico sem jeito, meio ridículo. Volto a ser aquele menino que ia ganhar coragem para tirar a menina de vestido rosa para dançar, mas que nunca tirou. Tentava, mas não conseguia. Puxa, eu juro, tentava mesmo!

Gastei muitos bailes no Clube Atlético Ypiranga para criar coragem, levantar, seguir, andar determinado em direção à menina de vestido rosa... Mas, ali, na hora da verdade, desviava. Eu sempre desviava. Via um ET no salão, um morcego verde na cortina, uma minhoca jogadora de basquete... e fugia. Não sei se ela notava. Eu queria tirá-la para dançar. Queria, sim! Só não conseguia. Jamais consegui.

Acho que ela também não conseguiu, porque não me lembro de tê-la visto dançando com ninguém. Estava lá, no mesmo lugar, com o mesmo vestido, sentada no canto, esperando pelo bailarino que não chegou. Era minha parceira, havia de ser, meu Deus, sempre foi. Minha parceira que não foi.

Cresci, mudei do bairro e nunca mais vi a menina de rosa.

Até hoje tenho altos grilos para dançar. Apesar dos whiskies quebra-gelo e das vezes em que balancei ao som dos bailes da vida, nunca pude dançar inteiramente. Creio que meu pedaço dançarino ainda vaga lá pelo salão do clube, feito alma penada, vacilante, seguindo em direção à cadeira que já não tem a menina de vestido rosa.

Não sei se outras pessoas já experimentaram isso. Ao ouvir músicas dos tempos das domingueiras, tenho a estranha sensação de visitar um museu. Eu as sinto como sendo de um passado remoto. Feito as peças que pertenceram a alguém de dois ou três séculos atrás. As músicas lentas da meninice me fazem viajar, como se houvesse dançado com a menina de rosa, mas nunca dancei.

Porventura, se você for dessa época das domingueiras do Ypiranga e conhecer aquela que já foi a menina do vestido cor-de-rosa, por favor, não fale de meu medo. Fale apenas que o par estava lá, sim, e a admirava, encantado. Diga que ele quase chegou, mas perdeu para o ímpar das circunstâncias. Fale que o menino gordinho do outro lado do salão dançava com ela de coração. Coração bailarino que, ainda hoje, ensaia passos elaborados ao som dos Bee Gees.

Maurício Cintrão

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