domingo, 22 de março de 2020

Estava a chover torrencialmente quando alcançou a rua, Melhor assim, pensou, ofegando, com as pernas a tremer, vai sentir-se menos o cheiro, Alguém tinha deitado mão ao último farrapo que mal tapava da cintura para cima, agora ia de peitos descobertos, por eles lustradamente , palavra fina, lhes escorria água do céu, não era a liberdade guiando o povo, os sacos, felizmente cheios, pesam demasiado para os levar levantados como uma bandeira. Tem isto o seu inconveniente, já que as excitantes fragâncias vão viajando à altura do nariz dos cães, como podiam eles faltar, agora que os donos se cuidem e alimentem, é quase uma matilha que segue a mulher do médico, oxalá um destes bichos não se lembre de adiantar o dente para experimentar a resistência do plástico. Com uma chuva destas, que pouco lhe falta para dilúvio, seria de esperar que as pessoas estivessem recolhidas, à espera de que o tempo estiasse. Não é bem assim, porém por toda a parte há cegos de boca aberta para as alturas, matando a sede, armazenando água em todos os recantos do corpo, e outros cegos, mais previdentes, e sobretudo mais sensatos, sustentam na mão baldes, tachos e panelas, e levantam-nos ao céu generoso, é bem certo que Deus dá a nuvem conforme a sede. Não tinha ocorrido à mulher do médico a possibilidade de que das torneiras das casas poderia não estar a sair uma gota do precioso líquido, é o defeito da civilização, habituamo-nos à comodidade da água encarnada, posta ao domicílio, e esquecemo-nos de que para que tal suceda tem de haver pessoas que abram e fechem a válvula de distribuição, estações de elevação que necessitam de energia elétrica, computadores para regular débitos e administrar reservas, e para tudo nos faltam os olhos.

José Saramago
"Ensaio Sobre a cegueira"

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