Estava a chover torrencialmente quando alcançou a rua, Melhor assim,
pensou, ofegando, com as pernas a tremer, vai sentir-se menos o cheiro,
Alguém tinha deitado mão ao último farrapo que mal tapava da cintura
para cima, agora ia de peitos descobertos, por eles lustradamente ,
palavra fina, lhes escorria água do céu, não era a liberdade guiando o
povo, os sacos, felizmente cheios, pesam demasiado para os levar
levantados como uma bandeira. Tem isto o seu inconveniente, já
que as excitantes fragâncias vão viajando à altura do nariz dos cães,
como podiam eles faltar, agora que os donos se cuidem e alimentem, é
quase uma matilha que segue a mulher do médico, oxalá um destes bichos
não se lembre de adiantar o dente para experimentar a resistência do
plástico. Com uma chuva destas, que pouco lhe falta para dilúvio, seria
de esperar que as pessoas estivessem recolhidas, à espera de que o tempo
estiasse. Não é bem assim, porém por toda a parte há cegos de boca
aberta para as alturas, matando a sede, armazenando água em todos os
recantos do corpo, e outros cegos, mais previdentes, e sobretudo mais
sensatos, sustentam na mão baldes, tachos e panelas, e levantam-nos ao
céu generoso, é bem certo que Deus dá a nuvem conforme a sede. Não tinha
ocorrido à mulher do médico a possibilidade de que das torneiras das
casas poderia não estar a sair uma gota do precioso líquido, é o defeito
da civilização, habituamo-nos à comodidade da água encarnada, posta ao
domicílio, e esquecemo-nos de que para que tal suceda tem de haver
pessoas que abram e fechem a válvula de distribuição, estações de
elevação que necessitam de energia elétrica, computadores para regular
débitos e administrar reservas, e para tudo nos faltam os olhos.
José Saramago
"Ensaio Sobre a cegueira"
"Ensaio Sobre a cegueira"
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