quarta-feira, 8 de maio de 2019

Traduzir o obscuro

Numa entrevista recente ao jornal literário Rascunho, de Curitiba (março de 2011), o escritor e tradutor Marcelo Backes comentou, ao ser perguntado sobre o nível das traduções brasileiras em geral: 
"Acho que o nível da tradução tem melhorado, inclusive porque os tradutores mais críticos estão deixando de ser meros intérpretes das expectativas do leitor e, aos poucos, estão dando mais atenção à arte da obra original do que ao gosto do leitor da tradução. Deixam complicado o que está complicado, e mantêm poeticamente obscuro o que é poeticamente obscuro. (...) A simplificação da obra de arte não ajuda nada no sentido de torná-la mais compreensível”.
Um tradutor procura geralmente o equilíbrio entre tornar o texto inteligível ao leitor e respeitar o texto no que o texto tem. 
Um texto literário, não importa em que língua seja escrito, e não importa o talento de quem o escreveu, contém partes pouco compreensíveis, partes obscuras. Contém às vezes erros, ou trechos mal escritos. 
Por mais brilhante que seja um autor, ele não é brilhante o tempo inteiro, e sabemos que muitos grandes escritores têm um texto desleixado e cheio de furos (são grandes autores porque têm outras qualidades, em outros departamentos). 
É voz corrente no Brasil a galhofa de que os livros de Paulo Coelho são muito melhores traduzidos do que em português, porque lá fora os tradutores corrigem seus defeitos de redação e de estilo.
Corrigem mesmo? Se o fazem, que vergonha. Porque não cabe ao tradutor melhorar o texto alheio. Se a frase é cambaia, que seja traduzida por uma frase cambaia, de sentido equivalente, no idioma-alvo. Se é obscura, que permaneça obscura ao passar pelo filtro. 
É preciso mostrar ao leitor-alvo quem é o escritor, com suas pequenas incompetências, suas contradições, seus deslizes de ritmo, sua empáfia ou vulgaridade vocabular... Há autores que escrevem bem, mas pontuam mal. Outros não revisam o que escreveram. Se um autor repete um verbo dez vezes em dez linhas, o tradutor deve fazer o mesmo ou recorrer a sinônimos?
Muitas vezes me deparei com um parágrafo que se estendia por três ou quatro páginas. O editor aconselhava: “Divida. Faça um parágrafo novo de vinte em vinte linhas, pra clarear a página”. Eu dizia: “É um texto de 1880, publicado em jornal, naquele tempo os caras queriam aproveitar cada centímetro”. Ele dizia: “Sim, mas está sendo lido hoje. O leitor de hoje gosta de uma página com muitos parágrafos, uma página que respira.” 
Obedecer ao texto antigo ou ao leitor atual? Decisões assim são tomadas a cada passo da tradução de uma obra. Qualquer autor, por melhor que seja, tem pequenos cacoetes, hábitos ou defeitos que (num mundo ideal!) um tradutor deveria tentar reproduzir. 
Às vezes uma frase desmantelada em inglês nos sugere uma frase perfeita (e de sentido equivalente) em português. Devemos usá-la? Ou devemos traduzir as imperfeições da frase original?

Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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