Tem
sido muito comentada uma canção recente, regravada no Brasil por Paula
Fernandes e Luan Santana: “Juntos e Shallow Now”. A canção original, que
concorreu ao Oscar deste ano, é “Shallow”, gravada por Lady Gaga e Bradley
Cooper para o filme Nasce Uma Estrela.
A
versão brasileira foi ridicularizada nas redes sociais. Mostra um lado
arriscado e difícil da arte de fazer a versão para uma canção em outra língua.
Vivo
dizendo aqui neste blog que fazer letra de música é mil vezes mais difícil do
que fazer um poema. Me parece óbvio. No poema, o poeta determina as regras, e
tem 100% de controle sobre o produto final. Quem não gostaria de trabalhar num
regime tão livre? Eu pelo menos gosto, e muito.
O
poeta é o dono do poema. Se ele quiser usar métrica usa, se não, não. Se quiser
fazer versos rimados ou brancos, ele é quem decide. Pode empilhar palavras,
pode escrever tudo em caixa alta ou tudo em caixa-baixa, pode citar trechos em
latim ou grego, pode usar gíria, pode escrever as palavras de cabeça para baixo
(Carlos Drummond já o fez).
Já
o letrista trabalha sabendo que seu texto não é o produto final: é um elemento
a mais que precisa se encaixar num processo mais longo, onde surgirá uma
melodia, um conjunto de progressões harmônicas, um ritmo, a voz do(a)(s)
cantore(a)(s), o timbre dos instrumentos...
Um
poema é 100% de si mesmo. Uma letra de música é uma fatia bem menor da obra de
arte (ou de entretenimento) que ajuda a construir.
O
que dizer, então, de uma versão? Muito mais difícil. É preciso dizer em
português o que foi dito (no caso) em inglês, com palavras de extensão e de sonoridade
totalmente distinta, com vogais e consoantes diferentes.
E
repito aqui o que repito sempre: na poesia, e mais do que na poesia, na letra
de música, a sonoridade é crucial. O sentido, o significado das palavras, corre
em paralelo – e digo isto com plena consciência de que a maior parte da
humanidade só enxerga nas palavras o significado, e não presta atenção na
sonoridade delas.
As
pessoas podem até ter ouvido musical quando ouvem um instrumento tocando, mas
perdem esse talento quando escutam palavras. Ficam musicalmente daltônicas. Por
que? Porque ninguém lhes disse que as palavras que ouvimos são feitas primeiro
de som, e só depois de sentido.
O
filme Nasce Uma Estrela é, se não me
engano, a terceira ou quarta refilmagem da mesma história: já assisti duas
delas, uma com James Mason e Judy Garland, e outra com Kris Kristofferson e
Barbra Streisand.
É
aquela história (que já foi muitas vezes à lavanderia, mas ainda tem muitas
refilmagens pela frente) do cantor famoso, encanecido e problemático que se
apaixona por uma cantora jovem, anônima, brilhante e cheia de amor pra dar. Ajuda-a
a fazer sucesso, e depois se desestrutura quando se vê eclipsado por ela.
A
canção (pelo que se diz – não vi o filme) surge no momento em que os dois decolam
na relação, tanto amorosa quanto profissional. É aquela canção que faz avançar
a narrativa, algo que os norte-americanos sabem fazer tão bem (quando querem).
Aquele
momento da relação em que duas pessoas se olham pra valer e perguntam: Tá a fim
mesmo? Quer ir até onde der? Tá sabendo o que vem pela frente? Tá disposta a
encarar a responsabilidade? Então bora.
A
parte mais interessante de toda a letra é justamente a teia de significados que
eu, pelo menos, enxergo em torno da palavra-título, “shallow”, que significa basicamente
“raso; a parte rasa de alguma coisa” (água, por exemplo).
A letra diz:
I'm off the
deep end, watch as I dive in
I'll never meet the ground.
Crash through the surface, where they can't hurt us
We're far from the shallow now.
O
que ao pé da letra daria, mais ou menos:
Já passei dos
limites, veja como eu mergulho
nunca vou tocar
o chão.
Rompendo a
superfície, onde eles não podem nos machucar,
estamos longe
do raso agora.
Posso
estar me confundindo, mas vejo uma série de ambiguidades interessantes nesse
trecho (o resto da letra é banal). Estar “off the deep end” significa algo como
chutar o pau da barraca, mas o uso da expressão “deep end” (literalmente, “a
parte mais funda”) faz a letra derivar para metáforas de água, mergulho, etc.
Dizem
que numa versão anterior do roteiro o personagem de Bradley Cooper morria
afogado, e talvez a lembrança desse detalhe, mesmo descartado depois, tenha
arrastado a letra para essa área semântica.
A
autora (imagino que seja Lady Gaga a principal autora da letra) fala em
mergulhar sem tocar o chão (ou seja, um mergulho na parte funda, na parte
segura), mas ao mesmo tempo lembra que agora eles (os amantes) estão longe do
raso. Nadar no fundo é tão perigoso quanto mergulhar no raso e bater com a cabeça
no chão.
Ainda
na mesma área semântica é bom lembrar uma expressão muito usada no inglês
quando a pessoa quer dizer que está numa situação desconfortável, insegura,
perigosa: “I am out of my depth”. Estou fora da minha profundidade (adequada).
Estou num lugar fundo demais, num lugar onde não dá pé. Corro o risco de me
afogar.
Pra
mim, essas linhas são a parte mais interessante da letra original. E é
justamente para essa parte que a versão (que imagino ter sido feita por Paula
Fernandes) não conseguiu achar um equivalente satisfatório.
Deveria
ter sido este o primeiro desafio. Se me pedissem uma versão, seria essa palavra,
“shallow”, que eu tentaria transpor, porque sem ela, não existe letra. Mas a
sonoridade de “shallow” é meio rara em português. “Achá-lo”? Não. “Falo, calo?”
Acho que não. E principalmente com esse “now” logo em seguida. Onde achar
alguma coisa que cubra esse “xalonáu”, e que abra as mesmas possibilidades de
múltiplo sentido?
Como
é difícil, a versão em português decidiu deixar como estava, mesmo ao preço de,
na balança entre o som e o sentido, dar 100% ao primeiro e zero para o segundo.
Uma solução pouco adequada.
Aconteceu
com o(a) autor(a) dessa versão aquela situação para a qual o inglês também tem
uma expressão muito saborosa, quando diz: “He painted himself into a corner”.
Ou seja: “Ele pintou o piso e se encurralou num recanto”. É quando a pessoa entra
numa situação sem saber como vai sair, ou começa a resolver um problema e deixa
a parte mais difícil para encarar no fim (e não consegue).
Tem
mais uma coisa – e aí voltamos àquele papo de que na música popular o Som é tão
importante quanto o Sentido.
A
palavra escolhida na letra original, “shallow”, acaba induzindo o compositor
(pelo que li, a música foi feita por Lady Gaga ao piano e três parceiros ao
violão, todos dando idéias ao mesmo tempo) àquele efeito vocal que todo mundo
conhece, o famigerado “sha-la-la-la-la”.
O
“sha-la-la-la-la” está para a música pop dos EUA assim como o “olelê, olalá”
está para a música popular brasileira.
É
uma figura-de-linguagem musical, e a canção acaba inevitavelmente derivando
rumo a ela, atraída pela força gravitacional de um refrão que todo mundo
conhece desde a infância e que convida a cantar junto.
De
cara eu me lembrei de “Baby, it’s you”, um sucesso de 1961 de The Shirelles,
que os Beatles regravaram logo depois:
Na
década de 1970 houve o enorme sucesso de B. J. Thomas com “Rock and Roll
Lullaby” (1972):
Pra
mim a utilização mais comovente é a de Tom Waits no clássico “Jersey Girl”, de
1980:
Ora,
se eu, que sou eu, lembrei logo de três exemplos, imagine Lady Gaga. “Shallow”
conduz inevitavelmente ao “sha-la-la-la-la” tão norte-americano quando a torta
de maçã. E foi esse x-do-problema linguístico que a versão brasileira não
conseguiu reproduzir. Recortou e colou o original: “juntos e shallow now”.
Isso
é um crime, um escândalo, uma coisa condenável? De jeito nenhum. É um problema
de ordem estética que o autor não resolveu satisfatoriamente. A prova de que a “solução”
encontrada não é satisfatória foi a grita imediata de inúmeras pessoas que não
fazem a menor idéia dos problemas envolvidos numa tradução, mas são capazes de
reconhecer um remendo mal feito quando se deparam com um.
Devemos
por isso apedrejar o(a) versionista? De jeito nenhum. Eu boto essas coisas na
mesma caderneta dos pênaltis perdidos e dos cacófatos involuntários. E a
verdade é que a gente aprende tanto com os erros quanto com os acertos.
Principalmente quando são os outros que erram.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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