Raymond Queneau chamou de “doidos literários" ("fous littéraires"), em seu livro Les Enfants du Limon (1938), todos aqueles sujeitos fora-de-esquadro
que se dedicam fervorosamente ao estudo e à especulação, e acabam produzindo
teorias sem pé nem cabeça sobre o Sistema Solar, ou sobre a Pedra Filosofal, ou
sobre a Quadratura do Círculo, ou qualquer outro tipo de “viagem”
pseudocientífica.
Queneau passou muitos anos de sua vida estudando esse
pessoal tipo Terra Plana, Universo de Gelo, e assim por diante. Não só esses –
também os “linguistas de fim de semana”, capazes de inventar um idioma
totalmente arbitrário que, acham eles, se fosse aprendido por toda a humanidade
acabaria com as guerras e as epidemias.
Neste capítulo, aliás, é imbatível (e divertidíssimo) o
livro Babel e Antibabel de Paulo
Rónai (Ed. Perspectiva, São Paulo), onde ele analisa as linguas inventadas mais
conhecidas, como o Esperanto e o Volapuk, e outras mais excêntricas.
O que leva esses malucos a dedicarem sua vida inteira a
projetos gigantescos dessa dimensão? Maldo eu que é uma mistura de Complexo de
Inferioridade com Complexo de Superioridade, uma receita mais frequente do que
se imagina.
Muitos deles são indivíduos com baixa auto-estima,
tímidos, macambúzios, com pouco traquejo social. Muitos são solteirões
misantropos, outros se refugiam em casamentos formais onde há uma mulher que cuida
deles e não faz perguntas. Ganham a vida como bancários, professores,
contabilistas, qualquer profissão que possa ser mantida numa rotina
confortável.
Uma vez obtida esta segurança, eles decolam numa viagem
(=delírio) de grandeza, de genialidade, uma verdadeira embriaguez conceitual de
quem se considera o Gênio Supremo da Humanidade.
A pesquisa de Queneau localizou centenas de “doidos literários”;
ele não conseguiu publicá-la (a pesquisa em si já estava se parecendo um pouco
com as doidices dos pesquisados), mas conseguiu contrabandeá-la para o romance Les Enfants du Limon, "Os filhos do barro", onde ela aparece
como o projeto intelectual de Monsieur Chambernac e seu ajudante Purpulan, uma
dupla meio “Bouvard e Pécuchet”.
Chambernac afirma estar pesquisando apenas “os doidos
literários franceses do século 19”. São aqueles cuja existência foi confirmada
mas que não tiveram a glória de formar uma seita de seguidores. Para
Chambernac/Queneau, quem chegou a ter discípulos não pode ser considerado “um
doido literário”.
Essa pesquisa foi retomada depois por André Blavier no
catatau de 924 páginas Les Fous
Littéraires (Ed. Henri Veyrier, Alençon, 1982), com um impressionante
repertório de pesquisa, ampliado a partir do de Queneau, de quem Blavier
(1922-2001) foi amigo e discípulo.
Uma pequena amostra, com o “Sumário” de seu livro:
O que são os doidos literários?
Queneau, em Enfants...,
estabelece que não basta ser um autor meio excêntrico que imagina ter feito uma
super-descoberta pseudo-científica. É preciso não haver seguidores, não haver
fama, não haver o elogio da crítica, não haver reedições de sucesso. Ou seja:
quando o Doido Literário começa a ter um certo poder social, sua obra perde a
graça, a graça do sintoma.
Queneau sabia muito bem o quanto as multidões podem ser
levadas a acreditar numa teoria sem pé nem cabeça, seja ela científica ou
religiosa. Ele eliminava (Enfants,
cap. XXI) “todos os místicos, visionários, espíritas, teosofistas etc., cujas
elucubrações possam ser ligadas a outras já mais ou menos reconhecidas, e que a
prudência me aconselha a não tratar de forma leviana.”
A Pseudo-Ciência é uma arma política poderosa. Vale a
leitura dos capítulos que Pauwels & Bergier dedicaram em O Despertar dos Mágicos às teorias do
maluco Hans Hörbiger, chamado por alguns “o guru de Adolf Hitler”, propositor de
uma Cosmogonia Glacial em que o Universo era visto como uma luta entre o Fogo e o Gelo.
Todos eles sabem que as pessoas não são motivadas pelo que
compreendem, e sim pelo que desejam de forma profunda, e que se esse desejo for
satisfeito, ou se a expectativa dele for estimulada, o sujeito é capaz de
“compreender” tudo que lhe explicarem, inclusive que dois e dois são cinco e
que tamanduá e bicicleta são a mesma coisa.
Os trechos dos doidos literários citados em Les Enfants... (Le Barbier, Roux,
Hussenot, etc. etc.) são de deixar perplexo um leitor moderno. Não pelo
trabalho conceitual de inventar tudo aquilo, porque afinal de contas um
escritor de ficção científica ou de fantasia (como Tolkien) é capaz de criar
enciclopédias igualmente gigantescas e detalhistas. Mas o escritor sabe que
está inventando. O doido literário pensa que está descobrindo.
É a certeza da própria certeza (e da própria genialidade)
que move esses indíviduos, e é uma sorte da humanidade que eles sejam, na
esmagadora maioria, sujeitos obscuros e arredios. Uma mistura de Policarpo
Quaresma com Bispo do Rosário.
Porque quando acontece de ser um cara com carisma, com
eloquência, extrovertido, ambicioso, arregimentador,
calculista... Deixa de ser um doido literário. Passa a ser um perigo para a
literatura, e para o mundo.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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