terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Não há vagas

O menino-Deus veio ao mundo num quadro de extrema humildade e despojamento. Um pobre carpinteiro sai com sua mulher de Nazaré e viaja primitivamente até Belém, para cumprir uma disposição legal do Império – o recenseamento. Estando ali – como diz o Evangelista – aconteceu completarem-se os dias em que Maria devia dar à luz. E deu à luz o seu filho primogênito, e o enfaixou, e o reclinou numa manjedoura; porque não havia lugar para eles na estalagem.
 
Cristo assume assim obscuramente o seu destino humano. Entra no tempo e na história pela porta da maior modéstia. O carpinteiro, sua mulher grávida obrigada a uma penosa viagem, a falta de lugar nas estalagens – tudo fala eloquentemente de uma pobreza singela e anônima. A primeira lição, pois é a do desprendimento absoluto, da absoluta pobreza.
O Natal soa, por isso mesmo, em nosso mundo de 1966, como um escândalo, só comparável àquele outro escândalo que encerra o ciclo do Redentor da terra – a morte na cruz. Que sentido terá, para a nossa mentalidade destes dias, essa estranha festa da esperança, que nos convida a renascer segundo valores que negam e repudiam os critérios dominantes?
Num mundo dominado pelo sentimento do lucro e da competição, como entender a mensagem e o mistério que se desprendem da humilde gruta de Belém? Num mundo que devassa o cosmos, que se prepara orgulhosamente para a conquista da Lua, que planifica a família, raciocina eletronicamente, prega o “birth-control”, ri-se da virgindade e exalta a pílula anticoncepcional, que lição encerra o nascimento de um Menino reclinado numa manjedoura? Um carpinteiro dócil a uma vontade que vem do alto, um carpinteiro sem poder aquisitivo e uma virgem que ouve vozes e fala com anjos... – como esse quadro parece distante da automação e dos cérebros eletrônicos, dos foguetes intercontinentais e da técnica da “mass-communication”! 
Talvez por isso a gruta se entulhe, hoje, de guizos e quinquilharias, para disfarçar o anacronismo meio bucólico e certamente subdesenvolvido em que é difícil identificar o sentido e o símbolo transcendentes que a Natividade encerra. Aos olhos infantis de hoje, que é o presépio ao lado do maravilhoso trenzinho elétrico? Que atrativo tem essa história ao lado do fascinante autorama?
São Francisco, que é um personagem antigo, anterior à industrialização e ao planejamento, queria que os pobres e os mendigos fossem cumulados de presentes no dia do Natal. O pobrezinho de Assis recomendava que se desse uma ração suplementar de aveia e feno aos bois e aos burros para comemorar o Nascimento. E contam os seus biógrafos que muito sonhou com uma audiência com o Imperador, para pedir-lhe um édito que mandasse semear alimento, ao longo das estradas, para os seus irmãos passarinhos. Que coração insensato pediria hoje um ato institucional fundado na misericórdia e no perdão?
De repente, o Menino ficou antigo como uma écloga virgiliana e, como há 1966 anos, não há lugar nas estalagens. A pobre família de Nazaré continua mergulhada na obscuridade e o Papai Noel que vende eletrodomésticos pelo crediário nunca ouviu falar numa remotíssima gruta de Belém, com um boi e um burro que o cavalo-vapor tornou obsoletos.
Não há vagas – dizem as tabuletas que o meu momentâneo pessimismo vê pregadas em todas as portas. Algo mais forte, porém, me diz que contra toda evidência e contra todas as portas fechadas, no fundo do coração humano subsiste a esperança. E é dela que fala o Natal.
Otto Lara Resende

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