sábado, 21 de dezembro de 2013

A morte - O banquete final

Interessante como a palavra Morte causa espanto no ser vivo. Ao leve pronunciar da dita cuja, uma enxurrada de interjeições se espalha nos rostos banhados de terror: "Cruz credo! Deus me livre! Longe de mim!". Sem contar os mais supersticiosos que procuram madeira para dar três batidinhas e, na falta dela, até cabo de vassoura serve para vingar a simpatia.

Hoje, eu resolvi desafiar a safada. Sim. Falar da atrevida e das nuances que adquiriu em nossa viva, robusta e cada vez mais saborosa Língua Portuguesa. Pode até ser que nós, os glutões desse idioma, não tenhamos um cardápio de vida muito diversificado em conforto, cultura, saúde e lazeres, mas, com certeza, a nossa morte é bem mais apetitosa que a dos países de Primeiro Mundo e nosso menu é farto.

O termo morrer é o mais usado. E o mais sinistro. Aos mais educados e sensíveis, portadores de paladar refinado, a notícia ruim é sempre amenizada pelo eufemismo insosso, acompanhado, naturalmente, do cínico diminutivo ou adjetivos adocicados. São as pessoas ideais para dar notícia de falecimento a cardíacos e afins: "minha senhora, sua mãezinha entregou a alma a Deus". "Sua querida e estimada mãezinha partiu dessa para melhor". Com certeza, até a pessoa processar que a genitora bateu as botas, irá dar um bom tempo para que não caia durinha também, fazendo companhia à mãe no mesmo caixão.

Há os degustadores da nova linguagem, o pessoal mais descontraído, que entorna litros de coca-cola com sanduíches de carne bovina duvidosa. Faz da vida uma eterna piada e, da morte, a piada fatal: " ô, dona, sua veia pipocou". "Baranga, queimou a bateria de sua véia". "Psiu, coroa, sua veia tá olhando, agora, pro teto preto". "Pô, cara, tua mãe tá olhando o dedão do pé".

Há, ainda, os mais circunspetos, os cartesianos, que, até na hora do esticar das canelas alheias, procuram encontrar a palavra certa, como se saboreassem o trivial sem variações. Jamais se submetem ao ridículo. Comportam-se bem à mesa: "minha senhora, sua mãe faleceu de morte morrida".

Não poderia me esquecer dos esotéricos, os que tentam atenuar a comida muito salgada com pitadas de adoçante. Sempre têm um remedinho para as desesperanças alheias. Geralmente dito em voz baixa e suave, transformam o pesado momento de dor numa refeição light. Como se tomassem sopa sem fazer ruído: "querida irmã, sua mãe biológica e amiga eterna desencarnou".

Em oposição, há os que mastigam alto, palitam os dentes em público, arrotam sem inibição. Dotados de certa dose de sadismo apimentado, são os que acendem o fogão na última ceia e, toda vez que podem, não perdem a oportunidade de tornar a chama cada vez mais alta: "minha senhora, sabe... bem... de fato... sua digna mãe, aquela, a quem todos conheciam, de tanto beber, está, digamos..., agora, sentada no colo do capeta".

Ia-me esquecendo dos entendidos em Informática. Esses, criadores de novos e estranhos cardápios, mestres-cucas do neologismo cibernético, como não têm tempo para saborear a vida, limitam-se a pronunciar estranhas e rápidas palavras na derradeira refeição : "ei, deletaram sua mother da face da Terra". "Brother, sua mãe deu pau. Não tem como reformatar!". "Mano, um vírus muito conhecido crackeou seu HD C:\familia e apagou o arquivo mamae.doc".

A bem da verdade, e se é que se pode escolher — quando chegar a minha hora de juntar os cambitos, pretendo expirar rodeada de prantos sinceros, batendo a caçoleta, sorrindo, deixando filhos e netos, que, provavelmente, irão dizer, em meu banquete final : "que massa, a vó virou comida de minhoca!" E que eu seja mais um adubo nesta terra jamais falecente, e que alguém, muito querido, possa abotoar-me o paletó que não tive em vida.
 
Ana Paula Sabbag 

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