terça-feira, 3 de abril de 2012

Brasil cinza

O uso do nome Brasil para designar nosso país é anterior ao descobrimento de 1500. Dizia-se de um lugar paradisíaco, terra das delícias. Isso pode ser lenda apesar dos planisférios que já no século XIV traziam inscritos uma ilha Brasil, sempre a oeste dos Açores. Costuma-se dizer, apesar da fábula – e por coincidência ou não – que o nome Brasil vem da árvore Pau-Brasil, Caesalpinia echinata segundo a denominação de Lamarck , Ibirapitanga, a árvore ou madeira vermelha dos índios, encontrada neste começo de século XXI quiçá apenas em hortos, reservas e jardins botânicos. Foi extinta com a extinção da Mata Atlântica, após lutas sangrentas pela madeira cor de sangue da qual extraia-se a brasileína para tingir as vestes dos europeus ricos, manchadas doutra forma – que se acrescente - pelo sangue dos ameríndios e de todos os países conquistados e colonizados. Da madeira cor de brasa, também se fazia o arco de violinos desde o século XVIII - quando então era chamada Fernambouc por sua proveniência pernambucana. A moda e mesmo a arte, a sublime música, participava ou aproveitava-se da (vegetal) carnificina guardando na delicadeza de seus produtos a memória do gesto predatório (e, noutro registro, genocida) que está na origem da relação entre Europa e Américas.

O Pau-Brasil tem a cor do sangue com que a Europa – principalmente no caso americano, na figura de espanhóis e portugueses - banhou a América Central e a América do Sul. A cultura européia é a confirmação da relação de dominação entre cultura e natureza.

Conheci a madeira do Pau-Brasil em formato de cinzeiro na casa de uma família de fumantes. Aquele receptáculo de cinzas de cigarro é o signo imundo do tempo passado e do futuro guardados num objeto cotidiano, que servia a depositório de cinzas, sendo também enfeite e, lembro, do qual se orgulhava aquela célula da sociedade burguesa. Esse objeto traz, no resumo que ele corporifica, a miséria da existência burguesa, da história e da cultura humanas. (Não quero dizer com isso de um preconceito moral contra o tabagismo, que não haja uma poética no ato de fumar, muito antes ao contrário, confio na interpretação de nosso poeta Mário Quintana, para quem o gesto do fumante esconde suspiros, mas é de uma ironia curiosa esse fato que deve ser comum ao cotidiano de muitos.)

O design aparecia ali como fóssil histórico, representante da forma exata adquirida pela natureza no presente.

O Brasil é um país de pouco mais de 500 anos. Pouco tempo considerando a história ocidental, mas um tempo suficiente para declará-lo – por suas muitas mortes e muita destruição – parte da história da cultura como domínio da natureza. A morte das espécies da natureza, a morte da natureza como tal ultrapassa a velocidade do tempo: ela é o signo do futuro.

Nosso futuro (a quem pertencerá?) cabe no presente no qual o passado foi exorcizado como a árvore no cinzeiro, como o símbolo de uma terra, e de uma nação, é capaz de morrer na forma de um pequeno objeto de uso privado.

Poucos séculos de Brasil: o Brasil é a extinção da coisa natural que lhe dá nome segundo a oportunidade mimética que a linguagem oferece. A extinção de sua matéria, de sua origem simbólica, de seu significante é, hoje, o nome do Brasil. Definir o Brasil, pensar sua identidade como Nome apenas pode ser algo que produza emancipação se pensamos na significação da extinção do elemento mimético que produz esse nome. Estamos batizados pelo que eliminamos. Somos batizados pelo que lançamos ao lixo, pelo que matamos. Brasil significa, do ponto de vista histórico, a extinção de um tipo de vida vegetal e de muitas vidas humanas. Brasil, um nome vindo da natureza, demarca culturalmente a natureza como algo morto. A dominação da natureza fazendo-a coisa morta é uma de nossas marcas. Somos, no entanto, em território estrangeiro país visto muitas vezes como uma paisagem tropical. Fora do Brasil somos bananas e carnaval, mulatas e praia. Cor, alegria, sensualidade, brasas de corpos e imagens. A linguagem demonstra, no Nome Brasil, toda a sua camuflagem e o seu engodo. O nome Brasil apaga a sua verdade. Brasil é não Brasil. Nossa melhor pintura seria um quadro de natureza morta.

Cadáveres de micos dourados pendurados aos fios de eletricidade. Cruzes no lugar de árvores com a inscrição Jabuticaba. Papagaios em espetos em vitrines de restaurantes caros. Índios vestidos como Drag Queens vendendo missangas e espelhos no saguão dos grandes hotéis. Essa seria a nossa real paisagem se fôssemos realmente pornográficos. Mas nosso bom comportamento apenas nos permite olhar a tela “Traição das imagens” de Magritte, e - substituindo o cachimbo - escrever: “isto não é um cinzeiro”.

Não somos o que significamos? Ou significamos a morte do elemento primitivo que nos significa? Como pode sobreviver um signo cultural forjado na dependência do signo natural, se este foi extinto?

Temos, então, nas mãos um vazio.

O vazio da linguagem é o único momento que fala a verdade do ser. O oco do cinzeiro é a verdade do Pau-Brasil, o oco a ser preenchido com cinzas.

O vazio é também o nome de um desespero. E, como desesperados, seria lógico que procurássemos a verdade dos sonhos como fizeram os surrealistas.
 
Nossa esperança não é verde, mais apropriada para fotografar nossa paisagem seria a cor de cinzas tal como aparecem os sonhos. Sonhos não são verdes, mas cinzentos como a cor melancólica da morte e da falta. De um lado, a melancolia nos atinge em cheio, vinda de Portugal com Fernando Pessoa e os saudosistas, chegando à literatura na prosa machadiana, na poesia romântica, em Lima Barreto, em tantos outros e penetrando os movimentos modernistas que tentavam superar a tristeza pelo ufanismo, cantando as belezas coloridas da pátria. O ufanismo futurista e ingênuo impediu um enfrentamento do cinza: o surrealismo, o movimento que trata do sonho, não se instaurou com sua força revolucionária nos prados brasileiros, absorvemos tudo, mas não o uso revolucionário do sonho; ele nos faria olhar para a pátina empoeirada e a impossibilidade de limparmos a fotografia em banco e preto de nossa realidade.

O espírito surrealista não vingou no Brasil.

Faltou-nos uma revolução de cor cinza. A revolução surrealista que invertesse o real e o sonho, que refizesse a relação entre o onírico e a vigília, fazendo o sonho penetrar com força avessa na história para destapá-la de seus véus ideológicos.


Marcia Tiburi

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