segunda-feira, 30 de abril de 2012

Mitos científicos se perpetuam mesmo quando são desvendados

Por erro decimal em uma publicação, a força do marinheiro Popeye foi atribuída ao consumo de espinafre, quando na verdade deveria ser de fígado de galinha

Na verdade, os neutrinos não viajam mais rápido do que a velocidade da luz. Cientistas reafirmaram isso em março, corrigindo as conclusões extraídas de um experimento em setembro passado que pareceu virar de cabeça para baixo a teoria especial da relatividade de Einstein. De acordo com reportagem da Science, o erro do outono passado pode ter sido resultado de uma conexão falha de fibra óptica entre o receptor GPS e o computador usado para calcular o tempo que os neutrinos levavam para viajar de CERN em Genebra até um laboratório na região de Gran Sasso, na Itália. Evidentemente, os cientistas tinham a intenção de replicar o experimento para tentar determinar se aquilo que não era verdade era de fato verdade. Veremos.

Fiquei surpreso ao ler que os neutrinos provavelmente não são mais velozes do que a luz, afinal, também fiquei bastante impressionado quando descobri que o espinafre não continha nem perto da quantidade de ferro que diziam antes. Durante os anos 30, os produtores de espinafre atribuíam a Popeye – e à crença popular de que ele devia sua força ao ferro do espinafre – um aumento de 33% do consumo da verdura. Esta tendência fez com que os produtores e vendedores de espinafre erguessem estátuas em homenagem a Popeye em Crystal City, Texas; Chester, Illinois; e Alma, Arkansas.

Num artigo recente na revista Query na Itália, Sergio della Sala e Stefania de Vito citaram uma tabela de valores nutricionais publicada pelo Departamento de Agricultura dos EUA, que mostra que 100 gramas de espinafre contêm 2,7 miligramas de ferro. (E este é o espinafre fresco – o enlatado, como o do Popey, tem apenas 2,3 miligramas.) Por comparação, 100 gramas de fígado de galinha contêm 11,6 miligramas de ferro. Se o Popeye engolisse fígado de galinha com a mesma voracidade com que ele devorava lata após lada de espinafre, ele poderia ter agarrado o Super-Homem pelo calcanhar e o colocado em órbita.

De acordo com uma teoria há muito estabelecida conhecida nos círculos científicos como História do Erro Decimal do Ferro no Espinafre do Popeye, ou SPIDES, na sigla em inglês, o criador do Popeye, E.C. Segar, entendeu errado a quantidade de ferro no espinafre por causa de uma vírgula colocada na casa decimal errada. Diz-se que no ano de 1870 um certo Dr. E. von Wolff publicou uma tabela na qual a vírgula da casa decimal aparecia no lugar erado – e que o erro foi retificado nos anos 30, mas Segar não sabia disso.

Entretanto, parece que até a hipótese SPIDES é falsa. Filologistas nos dizem que Segar escolheu o espinafre para alimentar seu herói dos quadrinhos não por causa de seu conteúdo de ferro, mas por causa de seu alto teor de vitamina A. Vale a pena olhar um dos inúmeros textos dedicados ao assunto – talvez o mais famoso seja "Espinafre, Ferro e Popeye", um artigo de 2010 escrito por Mike Sutton no Internet Journal of Criminology. A história pode parecer sem consequências na superfície, uma vez que está ligada a um personagem de quadrinhos. Mas é significativa, considerando o negócio multimilionário que emergiu do fato de este famoso marinheiro declarar qual era sua verdura favorita. O incidente é só um exemplo de como os mitos nascem e se perpetuam.

Outra informação: numa edição recente do jornal italiano La Repubblica (que também, incidentalmente, quase chamou os neutrinos de tartarugas), havia uma discussão sobre a necessidade de uma cultura multilíngue. Isso é óbvio, pode-se dizer, hoje em dia. Mas por muito tempo sustentou-se que para superar a Babel de línguas era necessário inventar uma linguagem universal, e muitas línguas assim foram propostas – algumas delas excelentes, como o Esperanto. Mas no final, uma língua natural – o inglês – ganhou o dia.

A ideia de desenvolver uma linguagem universal feio de outro mito de mil anos: de que nos tempos primordiais havia a língua de Adão, uma língua perfeita que foi perdida com o escândalo da Torre de Babel. Vide a busca espasmódica pela língua perdida, ou por uma que possa substitui-la.

Hoje nós sabemos que não existe nada parecido com uma língua perfeita – que as línguas se desenvolvem espontaneamente de acordo com as necessidades das pessoas, que evoluem. Mas há uma história esplêndida contada por Ibn Hazm, um pensador árabe do século 11: no início, disse ele, existia uma língua dada por Deus, mas esta língua continha todas as outras, que se separaram só depois. Então o dom de Adão era o poliglotismo, e por esse motivo, todos os homens podem entender revelações em quaisquer línguas que sejam expressas.

Este é um ótimo mito com o qual encorajar o poliglotismo – uma habilidade, incidentalmente, que será útil para perpetuar, e derrubar, mitos.

* Umberto Eco é autor do livro "Sobre a Feiura" e também dos best-selleres internacionais "Baudolino", "O Nome da Rosa" e "O Pêndulo de Foucault".Tradutor: Eloise De Vylder

Coluna do Umberto Eco
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