quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Jegues, esses desprezados


Introduzido pelos colonizadores portugueses, o jegue adaptou-se extraordinariamente às condições ambientais ímpares do semi-árido, de cujas paisagens integravam indissociavelmente há pouco tempo, quando os sertanejos ainda estavam dependentes dos mesmos para diversas atividades imprescindíveis do cotidiano.


Padre Antônio Vieira, cearense de saudosa memória, dedicou a vida à defesa dos humildes animais, cujos escritos exaltaram as virtudes do jumento, nosso irmão, imortalizado ainda em belíssima canção composta e interpretado pelo eterno Luiz " Lua" Gonzaga.


Vieira denunciou também a forma desprezível como os humanos vinham tratando importante personagem da história sertaneja.


Impossível elencar todas as contribuições fomentadas pelo jumento, as quais vão desde os meios de transporte ao fornecimento de carne e leite às populações desvalidas, embora frigoríficos o tenham usado em diversos momentos para a fabricação da carne de charque.


O sertão deve ao jumento preito de gratidão ainda não efetivado, a região bem que poderia edificar monumentos em cada cidade em louvor ao sofrido animal que se imortalizou no imaginário cristão devido ter conduzido Jesus quando da fuga para o Egito, mas, inadmissivelmente, trata-o de forma deplorável, imitando grande parte da população árabe do oriente médio quando da substituição do camelo pelo automóvel.


O sertanejo trocou o jumentos pelos carros e motos, difícil encontrarmos nas quebradas do sertão alguém montado em jumento pois a inserção da hinterlândia na era da pós-modernidade trouxe consequências nefastas para nossas valorosas práticas sócio-culturais, as quais incluíam invariavelmente a exponencial valorização desses animais.


As feiras de outrora eram assinaladas pela presença dos jegues em cada esquina, quando os sertanejos que habitavam a zona rural afluíam em massa para as cidades a fim de comercializar excedentes e se abastecer de víveres indispensáveis.


Montados em jumentos, encourados e com chapéus de couro quebrados nas testas, desfilavam orgulhosos pelas artérias movimentadas.


Localizada no Seridó oriental paraibano, divisa com o estado da Paraíba, a cidade de Pedra Lavrada se caracterizava justamente pelo impressionante número de pessoas montadas em jumentos quando de suas feiras semanais. Amarrados ao lado do antigo cemitério, os jumentos esperavam seus donos pacientemente.


A paisagem rur-urbana da aprazível cidade encravada nos contrafortes adustos da Borborema ocidental era marcada pelo grande número de jegues, hoje radicalmente modificada em razão do impressionante desaparecimento dos singelos animais, desprezados devido ao descortinar de novas práticas culturais alicerçadas na globalização.


O sertanejo nos dias de hoje não dispensa guidons de motos nem volantes de possantes carros, os quais não cedem mínima margem de contestação a qualquer hipótese sobre a reafirmação do jumento na vida social da região.


Causa admiração boiadeiros em duas rodas conduzir o gado para o curral, em clara afronta às tradições da terra do sol.


Ridicularizados pelo atual estágio em que se insere o sertão, os jegues se amontoam pelas estradas asfaltadas e poeirentas nas quais um dia imperou de forma hegemônica, escanteados por aqueles aos quais um dia ajudaram a fazer a grandeza da civilização da seca assentada no heroísmo épico que precisa ser resgatado enquanto preito de gratidão em tributo à bravura de um passado glorioso.



José Romero Araújo Cardoso. Pombalense - Geógrafo. Professor da UERN. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Contato: romerocardoso@uol.com.br

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