"(...) Suponho
ter sido a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma câmpula de
bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos,
chorou a morte da Justiça.
Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da
aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e
continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo,
longe ou aqui ao lado, à porta de nossa casa, alguém a está matando. De cada
vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela
tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da
Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça.
Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã
retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e
viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o
outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira cotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exato e rigoroso
sinônimo do ético. (...) Uma justiça exercida pelos
tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e
sobretudo, uma justiça que fosse a emanação
espontânea da própria sociedade em ação, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível
imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano
assiste".
(José Saramago)
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