domingo, 25 de abril de 2010

De onde vem e para onde vai nosso desejo de saber?

De como a curiosidade nomeia nosso primitivo desejo de saber

Todos os seres humanos, dizia Aristóteles em sua Metafísica, possuem o desejo de saber. Leia-se: são movidos pela curiosidade. A curiosidade é um desejo primitivo de desvendamento das coisas. Sua metáfora é a da lanterna que rompe o escuro. Curioso é aquele que pode segurá-la.

A curiosidade pode ser elaborada com o tempo, orientada para direções diversas, mas em sua origem é como a fonte de onde jorra o desejo de saber. Ninguém sabe ao certo de onde ela vem, por que nasce aqui ou acolá, neste ou naquele terreno. Sabemos, porém, que se a curiosidade for proibida a uma pessoa, faltar-lhe-á alimento, ela não sobreviverá no mundo da cultura, pois não encontrará a ciência, nem a arte, nem a filosofia que ajudam cada um a descobrir seu desejo, aquilo que dá significado à sua existência pessoal, bem como sua pertença à condição humana.

A curiosidade é o impulso a conhecer sem o qual uma parte do ser de cada pessoa ficará amputado. É pela curiosidade que construímos nosso acesso às diversas camadas e territórios do mundo. É pela curiosidade que desenvolvemos a linguagem que é o primeiro e mais essencial aparato do saber. A curiosidade é a abertura da mente para o que existe, é a chave da porta para o mundo do conhecimento.

Todo conhecimento nasce de um desejo de saber sobre a natureza, o corpo, sobre o que existe e é, em algum momento, obscuro para nós. Querer saber sempre revela uma falta, a de que não sabemos. A ignorância é nosso estado natural, mas o desejo de saber é o que nos coloca dentro da cultura, mesmo que ele não seja mais do que um processo em busca do saber. Sábios são aqueles que, como Sócrates assumem o sei-que-nada-sei, ou seja, descobrem que o saber está na caminhada e não o objetivo, que sua construção é a busca e não um estágio final bem-aventurado onde toda dúvida se dissipa. As descobertas, seja na ciência, seja na vida, são sempre momentos, passos, num caminho infinito de buscas.

Nosso desejo de saber já estava manifesto nos mitos. Como todo desejo ele se constitui como falta de algo que anseia ser completada: todo desejo exige realização. Como tal ele faz sofrer em seu estado natural, enquanto permanece desejo, ou seja, algo irrealizado. Os sábios sempre se preocuparam em aplacar o sofrimento causado pelo desejo com explicações, como as que são dadas nas narrativas míticas.

A filosofia, contrariamente ao mito, passou a valorizar mais a pergunta que a resposta e, a partir daí, abriu o ser humano para a liberdade do pensamento, a liberdade que sua racionalidade podia oferecer como experiência de vida. Uma liberdade que exigia autoconsciência e responsabilidade pelo lugar que cada ser pensante tinha em relação ao todo.

De como desejar saber depende de um encontro com o outro, do qual sabemos nada ou muito pouco,
e de como nos tornamos iguais uns aos outros pelo desejo de saber

Curiosidade é abertura para o que não somos. Para o que está além de cada um. É a postura generosa por natureza. A etimologia da palavra remete ao latino curiositas, cuja raiz carrega a noção de cura, cuidado, diz respeito a um modo de viver e pensar que sempre envolve o outro. Mesmo quando alguém busca conhecer a si mesmo é apenas buscando algo pelo qual tem interesse que acaba por descobrir-se a si. A idéia de que é saindo de si que se chega a si mesmo envolve a hipótese de que ninguém se torna o que é sem passar pelo outro, sem chegar antes ao mundo, sem instaurar-se no universo da linguagem como gesto que se revalida a cada momento pela troca e reconhecimento do outro. O caminho para mim passa pelo outro, é por meio dele que descubro meu próprio eu.

A pessoa sem curiosidade está fechada em si, o outro não lhe importa, seja este outro uma pessoa, um tema, um objeto de estudos, um outro discurso, outra visão da vida. Alguém sem curiosidade, ao descuidar do outro, se aliena de si mesmo. Não é possível conhecer-a-si-mesmo sem voltar-se para o que está fora de si. O que mais importa neste processo é a qualidade da busca. No trajeto desta busca é que o ser humano se desenvolve como sujeito do conhecimento.

O conhecimento só tem sentido quando descobrimos o outro com o qual falamos, ao qual nos dirigimos e que se dirige a nós, cheio de perguntas. Nosso desejo de saber é o que nos iguala. Seria ilógico falar em conhecimento sem refletir sobre o espaço intersubjetivo, o intervalo que é espaço aberto e conexão que há entre Eu e Tu. Além da generosidade e da troca intelectual, a função política básica ao conhecimento está aí definida. É o encontro que define o conhecimento como emancipação. O conhecimento é o sentido e o meio pelo qual a humanidade se constrói. Todos queremos saber e só nos tornamos iguais se somos capazes de compartilhar o saber.

Sobre a expressão humana nos leva além da mera informação e de como ela estabelece a qualidade de nossos laços e de nossa comunicação

Seres humanos possuem a capacidade de pensar. Tais pensamentos dependem de sua expressão que se dá pela linguagem. Sem linguagem não há pensamento, pois precisamos das palavras para articular o que queremos dizer. As palavras são o corpo dos pensamentos. Elas são a manifestação do pensar que nos conecta uns aos outros. Querer dizer não basta, é preciso encontrar a forma certa de dizer. O “como” se diz algo é tão ou mais importante do que o “quê” se diz. O “como” é o espaço da relação. Neste lugar é que a reflexão nasce como fundadora de laços. Este é o campo especial do exercício da pergunta e da resposta. Toda reflexão depende, portanto, do potencial de expressão de um indivíduo no modo como ele se estabelece no contexto da coletividade. A expressão é a qualidade do coletivo. Sem ela não há consistência que alce o coletivo para além da massa.

Nos expressamos pela arte, pela ciência, pela religião. A expressão é a exposição das verdades que não dependem diretamente do nosso aprendizado da técnica. A técnica está nela submetida. Uma compreensão melhor do funcionamento de nosso desejo de expressão nos ajuda a seguir o caminho do conhecimento possível.

A expressão é tão importante quanto a informação quando falamos com alguém, assim como a formação é tão importante quanto a informação quando a questão é educar uma pessoa, fazer um amigo, respeitar quem não conhecemos.

Como nossa capacidade de expressão nos define como seres coletivos e como ela pode reconstruir a noção de humanidade

A evolução do conhecimento é a evolução da linguagem pela qual nos desenvolvemos como humanos. A idéia de humanidade está em crise, não sabemos mais o que é viver junto uns dos outros, pois não nos preocupamos com o sentido maior da relação que envolve a conversação entre nós. Quando deixamos de conversar eliminamos todos os nossos laços sejam públicos ou privados, na esfera das instituições ou na família.

Questionar o conhecimento hoje não é possível sem que pensemos num projeto de humanidade. O que é ser humano para a ciência, para a arte, para a filosofia? Mais do que projetos individuais de vida, precisamos de projetos coletivos que sustentem nossos projetos individuais e que estes sejam lançados como possibilidades de futuro para todos.

Como formar uma comunidade? Como alcançar um sentido maior para o coletivo? Por meio da elaboração da linguagem como diálogo. O diálogo é o caminho primeiro de todo o conhecimento. Uma criança sempre pergunta para alguém, ela não pensa sozinha antes de aprender a perguntar a outrem. Só aprendemos a ter idéias depois que conversamos com os outros. Como pensava Platão: “o pensamento é o diálogo da alma consigo mesma”. O que significa dizer que o pensamento é a reprodução interna de uma experiência externa. A produção da sociedade, sua evolução, depende do modo como estabelecemos nossos encontros em diversos níveis.

De como todo encontro, mesmo em nome do saber, é político, mas no bom sentido

Todo encontro é político porque a linguagem tem base política, ou seja, ela é enlace. A política é o contexto onde estabelecemos relações, não apenas o profissionalismo doentio dos que corrompem o poder. A corrupção da política deixa feridas em nossa noção de poder, uma destas feridas sangra o sentido de nossas ações: já não sabemos o que fazer.

A política é a forma das nossas relações: isto vale tanto para o universo da vida privada, a família, quanto para o universo da vida pública, tudo o que envolve a comunidade, desde o trabalho até a religião, desde as festas e comemorações que fazemos com os outros, até a democracia.

De como a habilidade racional das pessoas precisa aliar-se à sensibilidade

O pensamento reflexivo, aquele que compreende o fundamento das coisas e do próprio modo de pensar, é uma das maiores, se não a maior, conquista da humanidade, pois oferece os fundamentos a todas as demais. Nascemos capazes de racionalidade, mas precisamos aprender a desenvolver esta habilidade. A racionalidade avança nos trazendo novas técnicas e soluções tanto científicas como sociais. A racionalidade precisa, porém, da sensibilidade para se desenvolver. A história do conhecimento – da antiguidade à ciência moderna - produziu esta separação.

A humanidade só avançará na reconciliação entre razão e sensibilidade. Esta é uma tarefa que cabe a todas as esferas da sociedade.

Rousseau dizia que o homem racional é, antes de tudo, o homem sensível. A sensibilidade é o que precisa ser elaborada para criar o chão para a racionalidade. Isto significa dizer que nossos sentimentos precisam ser educados para que o conhecimento se torne algo desejável e possível. Sensibilidade não é apenas habilidade para as artes, muito menos mero sentimentalismo, mas capacidade de percepção e compreensão que dão base para nossa habilidade de raciocinar. Sensibilidade é uma forma de atenção que precisamos treinar. Num mundo atravessado e costurado pela tecnologia a sensibilidade é preterida. Corremos o risco de maior intimidade com a máquina do que com os seres humanos?

O desejo de conhecer nos acompanha, mas isto só é possível para a pessoa cujos sentimentos foram educados, é o que aprendemos na modernidade. A educação da sensibilidade é, para crianças ou adultos, o que há de mais complexo e difícil hoje, pois as escolas, as instituições, as famílias, não tem uma compreensão mais abrangente do lugar estratégico da sensibilidade na vida.

Não existiria ciência sem sensibilidade. Pensamos que a ciência avançou porque os homens queriam o poder que ela produz, mas ela não teria surgido sem uma vasta admiração pelas coisas que existem e que podem ser conhecidas. A natureza foi vista por muitos filósofos como um objeto, algo que devia ser desvendado a qualquer custo. O inglês Francis Bacon do século XVII foi o maior defensor desta visão ao dizer que “saber é poder”. Mas antes dele Leonardo da Vinci, entre a ciência e a arte, entre a anatomia e a pintura, dizia que a natureza era a maior das mestras, aquela que nos ensinaria tudo desde que soubéssemos olhar para ela. O aprendizado do olhar é uma forma de desenvolvimento da sensibilidade, mais do que uma mera técnica.

De como a teoria é uma forma de prática

Todo conhecimento nasce de um gesto humano pelo querer saber. Este gesto já é em si mesmo uma atitude. Atitude é um termo que define uma forma de prática. Teoria e prática, olhar e fazer, perceber e agir, estão mais próximos do que costumamos pensar. Só não estamos tão acostumados a pensar que nosso próprio pensar é ele mesmo uma forma de ação. Por que podemos dizer isso? Porque nossos pensamentos sempre nos levam a agir sob duas formas básicas: 1- ou na omissão, na passividade que é a forma negativa da ação, uma espécie de ação contraditória, ação como não-fazer, pela qual temos que fazer um certo esforço, no sentido de assumir uma postura de inação. Neste caso, quando vejo o mundo e, por medo ou por preguiça, ou mesmo por cálculo de vantagens (numa postura utilitarista imediata) eu decido “ficar na minha”; 2- ou conforme a ação positiva, a ação propriamente dita, aquela pela qual temos que escolher, deliberar e responsabilizar-nos. Em ambos os casos, posso agir movido por motivos externos ou internos. Submetido a uma força alheia à minha vontade ou não. A questão da decisão se torna essencial neste caso, pois é apenas a decisão consciente que conseguimos assumir se somos éticos. Porém, a questão maior é “se podemos assumir o que não sabemos que fazemos”. Quem não pensa não sabe o que faz, mas hoje em dia isto não pode ser desculpa. Pensar, refletir, tornou-se um imperativo ético num contexto de vazio do pensamento que leva à banalização de todas as coisas.

Todas as minhas ações são movidas por pensamentos sejam eles conscientes ou inconscientes, sejam claros ou obscuros, sejam meus ou não. Se não penso é possível que outrem esteja pensando no meu lugar e promovendo minhas ações, pois o território dos pensamentos é comum, é compartilhado.

Pensar é outra tarefa urgente. É o modo mais direto de reunião entre razão e sensibilidade, entre o raciocínio lógico necessário à produção da vida, às ações concretas e os dados que nossa atenção e percepção recolhem da realidade na qual estamos inseridos.

A rigor não há teoria sem prática, do mesmo modo que não há prática sem teoria, pois todo pensamento leva a uma ação ou omissão, ao agir ou à inércia. Julgamos mal o pensar que leva à omissão e à inércia, pois sabemos que não há uma ação consistente sem uma teoria que lhe dê bases seguras de compreensão. Pensar é o começo da prática.

Não há ação coerente sem uma compreensão prévia das circunstâncias onde as coisas precisam ocorrer. O pensamento reflexivo é aquele que tem o poder de provocar mudanças ao seu redor.

Ninguém que reflita deixa de mudar, embora a mudança possa ser muitas vezes sentida mais na interioridade do que na objetividade da vida, nas pequenas do que nas grandes coisas, no que é estrutural e não aparente. Nenhuma mudança que se dê sem uma modificação das estruturas profundas pode ser chamada de revolução. Só idéias sólidas, porque fundamentais para a verdade metafísica e ética de nossa existência como espécie, sustentam nosso modo de vida, só outras idéias e novos modos de ver o que existe é que podem mudar nossa vida.


Marcia Tiburi


Texto produzido para o IX Congresso Paulista de Urologia cujo tema foi Pensar, Refletir, Realizar: a Revolução do Saber, setembro de 2006.

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