sábado, 3 de setembro de 2022

Malungo

 


Pode parecer maluquice – palavra de origem controversa: viria do latim “malus” = mal, ou dos malucos, habitantes das ilhas Molucas , que vendiam cravo e noz moscada a preços absurdos, e lutaram ferozmente contra os portugueses -, mas tenho um dicionário na mesa de cabeceira, e o leio como se lê romance.
 
Ali não faltam personagens extraordinários, enredos mirabolantes, viradas de roteiro, palavras cujo passado contém segredos que talvez jamais sejam revelados, outras que morreram, que ressuscitaram, que se reinventaram, que usam máscaras, mentiras, maquiagem pesada.
 
O dicionário é meu I-Ching. Abro-o ao acaso (hoje foi na letra M) e tenho revelações.
 
Maçaneta tem esse nome devido à semelhança com a maçã. No século 16, quando a palavra nasceu, possivelmente ainda não havia maçanetas de alavanca (alavanca é das que têm origem misteriosa).
 
Macabro vem dos macabeus, heróis bíblicos cujo culto estava relacionado com a morte, e que ganharam esse nome por causa de Judas Macabeu, – literalmente, Judas Martelo, aquele que golpeia o inimigo, aquele que persegue e procura exterminar um mal.
 
Em latim, martelo é malleus – de onde provém “maleável”, o que se dobra ao martelo. Seria a morte maleável?
 
O calçamento de pedra britada, aglomerada com saibro e areia grossa e comprimida a rolo depois de molhada se chama macadame por causa do inventor dessa técnica, o engenheiro escocês John Mc Adam. Não tem nada a ver com a noz macadâmia, que deve seu nome a outro John Mc Adam, só que naturalista e australiano.
 
Machete era uma pequena viola; depois – ah, as artimanhas do destino! – virou um sabre de dois gumes.
 
Maçom vem de “makón”, o ato de preparar a argila para a construção. Maçonaria era a arte dos pedreiros. Não à toa chamam Deus de Supremo Arquiteto…
 
Maconha vem do quimbundo, e quer dizer erva santa.
 
Macaxeira era um dos nomes do diabo entre os índios do Brasil.
 
Se fumar maconha comendo macaxeira, estará acendendo uma vela pra Deus e outra pro diabo – só que o diabo não é o que parece.
 
Madeixa, hoje apenas uma porção de cabelos, quer dizer “seda crua”. Madeixas sedosas serão um pleonasmo.
 
Mago, que hoje significa mágico, feiticeiro, encantador, vem do grego “mágos” (sábio, sacerdote). Os reis magos não seriam nem reis nem feiticeiros, mas homens sábios (e talvez nem fossem três, mas doze). Um dos presentes que levaram era a mirra, uma planta utilizada para secar feridas e embalsamar cadáveres. Daí o verbo mirrar: ressequir, reduzir.
 
Malária é, literalmente, ar insalubre (mala + aria). Por isso não se pega malária em Buenos Aires.
 
Mancebo é o mesmo que moço, amante. Daí vêm tanto emancipar (libertar) quanto amancebar (prender-se a alguém, mas sem os vínculos do casamento). Mancebos emancipados e amancebados vivem uma espécie de liberdade bipolar.
 
Manco é igual a coxo (aquele que tem uma perna mais curta). Mas vem do latim “mancus”, derivado de “manus” (mãos). É manco, etimologicamente, aquele a quem falta… mão.
 
De “manus” também vieram manha e manhoso, no sentido de habilidade manual. Para, por exemplo, fazer manobras de várias maneiras, manusear manuscritos e manipular manivelas.
 
Manicômio é onde se cura a mania (“manía” = loucura, demência).
 
Marechal era quem cuidava dos cavalos.
 
Margarida quer dizer pérola, e foi daí que veio margarina (combinação de ácido margárico e glicerina).
 
Marmita vem do francês “marmite”, que significa hipócrita (“por causa do conteúdo escondido do recipiente”).
 
Por fim, bate o sono – hora de devolver o livro das palavras à mesinha de cabeceira – e vem a melancolia, de “melanós” (a mesma origem de melanina, melanoma). Melancolia não é mais que a bílis, o fel negro, o veneno sombrio.
 
Abri o I-Ching com maçaneta. Fechei-o com melancolia. E que ninguém venha me dizer que o dicionário etimológico não é um romance cheio de mistérios, intrigas, encontros, desencontros e sabedoria.
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EDUARDO AFFONSO
Arquiteto, escritor e colunista do jornal "O Globo".

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