terça-feira, 31 de agosto de 2021

O nosso Afeganistão de cada dia


O Oriente Médio continua em plena ebulição bélica. A crise humanitária desencadeada pelo Taliban, grupo extremista islâmico, foi reiniciada com a retomada de Cabul, capital do país, no último domingo (15/08), após quase duas décadas de invasão e domínio das tropas americanas e aliadas naquele país, “motivada pelo fatídico atentado de 11 de setembro”, sob o “pretexto” de caçar o terrorista Osama Bin Laden, líder da Al-Qaeda.

Estima-se que a dominação americana além de alcançar o dispêndio econômico de um trilhão de dólares, cerca de 2,3 mil militares americanos foram mortos e outros 20 mil foram feridos. Mas foram os afegãos que mais foram atingidos com 60 mil mortes nas forças de segurança e quase 120 mil mortes civis. 
 
As cenas da invasão transmitidas quase ao vivo para o mundo inteiro mostram que as mulheres e meninas afegãs novamente serão as mais expostas, submetidas não apenas a violência física mas, sobretudo, a violência da dominação excludente e da exploração sexual de toda ordem. Mulheres já não podem transitar sozinhas e são obrigadas a esconder-se atrás das muralhas das burcas além de serem proibidas de frequentar as escolas.
 
Com a mesma velocidade com que retomou o poder, o Taliban tem tido o cuidado de apresentar-se ao mundo numa versão mais tolerante, pelo menos aos olhos das lentes do mundo, longe delas, nada mudou. Casamentos forçados, torturas e prisões são praticadas contra as mulheres e meninas afegãs.
Ainda em julho, depois de assumirem o controle de Badakhshan, líderes religiosos forneceram uma lista de meninas, com mais de 15 anos, e viúvas, com menos de 45, para casarem com guerrilheiros talibãs. 
 
Mas a violência e a segregação contra as mulheres não atinge apenas o Oriente Médio, ela se espalha pelo mundo. No Brasil, vivemos cotidianamente uma guerra ainda mais terrível porquanto quase sempre a violência é praticada às escondidas, sem as lentes da TV, muitas vezes no ambiente intrafamiliar, de forma silenciosa e contínua. São Marias, Joanas, Terezas, vítimas anônimas de uma guerra que não iniciaram e quase sempre não têm como se defender ou dar publicidade. 
 
É bem sabido que a violência feminina nessa sociedade patriarcal vem se insurgindo durante os anos, infringindo não apenas a integridade física, mas igualmente, a consciência política, educacional e social das mulheres, atingindo indiscriminadamente todas as classes. Um caso marcante no Brasil, ocorreu na metade do século XIX (1872), no estado do Maranhão, em que o Desembargador sexagenário Pontes Visgueiro assediou Maria da Conceição, a “Mariquinha, menor de 15 anos, passando a ter relações sexuais forçadas com a impúbere, culminando por matá-la e esquartejá-la para que seu corpo esfaqueado coubesse em uma caixa. A história é contada no livro “O crime do Desembargador”, de autoria de José Eulálio Figueiredo de Almeida.
 
Um outro crime contra a mulher de grande repercussão no país foi o caso Doca Street ocorrido em 1976, em Cabo Frio-RJ. Ângela Diniz, após romper o seu relacionamento amoroso com Doca foi morta por ele após uma discussão calorosa. O caso abalou a sociedade carioca e o Brasil. Desse fatídico acontecimento é que deriva, impulsionado pelos movimentos feministas da época, a celebre frase “quem ama não mata.”
 
Atualmente, a cada sete horas se registra um feminicídio no Brasil. 
 
Apenas para quantificarmos a dimensão dessa nossa guerra, segundo pesquisa do Datafolha, durante esta pandemia, uma em cada quatro mulheres brasileiras acima de 16 anos afirmaram ter sofrido algum tipo de violência. Em números aproximados isso nos remonta a 17 milhões de mulheres que sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano. A violência doméstica no Brasil passou de 42% para a marca de 48%. Apesar de todas as medidas de restrições impostas pelo SARS-CoV-2, 37,9% das brasileiras sofreram algum tipo de assédio sexual.
 
Apesar de toda a edificação da rede de proteção à mulher brasileira, os números de ocorrências dessa violência feminina vêm tomando proporções insuportáveis. A edição da Lei Maria da Penha, sem dúvida, representou um grande avanço legal quanto a garantia da integridade física, psicológica e econômica das mulheres e o reconhecimento do feminicídio no nosso Código Penal como figura típica é uma página importante nesse capítulo de proteção, mas o combate a essa prática criminosa não nos parece ser suficiente apenas com o imperativo da lei. É preciso a disseminação de uma cultura de não violência cotidiana que envolva todos os atores, inclusive os agressores, e que seja desenvolvida na família e na sociedade uma cultura de igualdade, isonomia e proteção a mulher, sob pena de continuarmos vivendo o nosso cruel e silencioso Afeganistão de cada dia.
 
Teófilo Júnior

Nenhum comentário: