terça-feira, 8 de junho de 2021

Raízes da literatura

("repangalejando")

Uma vez, em Campina Grande, a sessão do “Cinema de Arte” exibiu o filme de François Truffaut, A Noiva Estava De Preto. É a história de uma mulher misteriosa que vai matando, de um em um, vários homens que não a conhecem, e não sabem por que motivo estão sendo mortos.
 
Na sessão em que eu estava, o projecionista trocou um rolo lá pelo meio do filme. Em vez do rolo número 4, por exemplo, ele passou o rolo 5, deixou correr até o fim, e quando deu pelo erro, colocou o 4, o que só fez piorar as coisas. O resultado é que surge uma cena anterior a um dos crimes, e o personagem que tinha acabado de morrer aparece vivo de novo.
 

Silêncio sepulcral na platéia. Um cara atrás de mim falou baixinho:
 
– Oxente, o caba não tinha morrido?
 
O amigo dele respondeu:
 
– Isso é cinema de arte, rapaz. O caba morre... envivece...
 

O episódio é verdadeiro, e engraçado, pela situação e pela reação do espectador. Ele tem, contudo, um aspecto que me faz rir em dobro. É a palavra escolhida pelo cara para exprimir o que sentia diante daquilo. A história não seria igualmente engraçada se ele tivesse dito: “Isso é cinema de arte, rapaz. O caba morre... fica vivo de novo...”.
 
O humor se dá muitas vezes pela via de uma reação verbal inusitada diante de um fato inusitado. Não só o humor. A poesia. A paixão. O assombro. O deslumbramento da descoberta. O paroxismo do medo. A vertigem de viver.
 
Tudo isso é capaz de provocar, em algumas pessoas, uma reação de improviso verbal que vai às raias do improvável, dependendo de quem é aquele indivíduo, de que vocabulário dispõe, que educação teve ou deixou de ter, que recursos verbais costuma empregar em sua vida comum.
 
Lá vou eu de novo pagar direitos autorais a Guimarães Rosa, em seu trecho exemplar de “São Marcos” (em Sagarana, 1946), o famoso episódio das palavras com “canto e plumagem”, onde ele justifica tais improvisos:
 

...e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinquenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo – Ó colossalidade! – na direção da altura?
 
O povo, esse inventador da língua, costuma arrancar não se de onde essas palavras imprevistas, para poder ficar pau-a-pau com o mundo, quando este lhes propõe um imprevisto qualquer.
 
Não é de outra natureza a reação do menino lá do interiorzão da França, que aos 7 ou 8 anos foi levado pelo pai à cidade, pela primeira vez, e a cidade perto da fazendinha deles era algo como Reims ou Chartres, onde avulta uma daquelas catedrais góticas capazes de deixar Stendhal estendido no chão, de mero assombro.
 
O guri foi, e voltou com o pai. A mãe e a avó lhe perguntaram se gostou de conhecer a cidade, ele disse que sim, e aí perguntaram-lhe o que ele achou da catedral. Ele hesitou alguns instante, e então deu um salto no meio da sala, plantou uma bananeira, e ali ficou, equilibrando-se, em resposta.
 
Quando o mundo nos propõe alguma experiência buleversadora-de-conceitos, temos o impulso verbal, o impulso vital de responder à altura, e é nesses instantes que alguém se descobre poeta.
 
Não se deve confundir esse impulso com o impulso do escritor erudito que fica durante horas folheando dicionários e Thesaurus em busca de uma palavra rara, sofisticada, expressiva. “Ó, minha amada, os teus olhos tão miríficos...”  Não senhor. Só vale se for de improviso, se a pesquisa durar um segundo, um batimento cardíaco, um piscar de olhos. Tem que ser uma busca instantânea por um glossário guardado na memória inconsciente para uma ocasião especial – que é agora.
 
Ainda circula nas redes sociais um vídeo feito em algum lugar do Brasil onde se mostra um céu noturno, tempestuoso, com chuva forte e raios, e de repente um menino grita: “Eita, mãe! Olha só como tá repangalejando!...”
 
É um neologismo maravilhoso, porque nota-se que o garoto misturou, no seu deslumbramento, duas palavras que ele já tinha escutado, “relampejando” e “relampagueando”, e acabou fundindo as duas na vertigem do momento. Está certo! É exatamente para isso que serve a língua. Para estar à altura de momentos únicos em nossa vida.
 
Os poetas de verdade são sensíveis a essa necessidade de “estourar a costura” do idioma quando é preciso dizer algo que a linguagem comum não comporta. Carlos Drummond, em seu poema satírico “Ao Deus Kom Unik Assão” (em As Impurezas do Branco), diz:
 
Eis-me prostrado a vossos peses,
que sendo tantos todo plural é pouco...

 

De fato, “pés”, apenas, é um plural muito mixuruca diante dessa potesta de multípede (quadrúpede, diriam as más línguas).

 

Bráulio Tavares

Mundo fantasmo
 

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