As crianças ignoram os relógios. Os relógios têm a função de submeter o tempo do corpo ao tempo da máquina. Mas as crianças só reconhecem os seus próprios corpos como marcadores do seu tempo. Se as crianças usam relógios, elas os usam como se fossem brinquedos. Que maravilhosa subversão! Usar a gaiola do deus Chronos como brinquedo de Kairós, o deus do tempo da vida.
As crianças, do jeito como saem das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma… Crianças não são para ser usadas como ferramentas. Elas são para ser gozadas, como brinquedos…
Os olhos, diferentemente do resto do corpo, preservam para sempre a propriedade divina do rejuvenescimento. O sábio é um adulto com olhos de criança.
Janucz Korczak foi um dos grandes educadores do século passado. Foi mansamente com as crianças do seu orfanato para a câmara de gás de um campo de concentração nazista. Ele deu a um dos seus livros, o título Quando eu voltar a ser criança. De acordo com a Adélia Prado, que rezou: “Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande…”.
Quero voltar para as crianças. A razão? Por elas mesmas. É bom estar com elas. Crianças têm um olhar encantado. Visitando uma reserva florestal no estado do Espírito Santo, a bióloga encarregada do programa de educação ambiental me disse que é fácil lidar com as crianças. Os olhos delas se encantam com tudo: as formas das sementes, as plantas, as flores, os bichos, os riachinhos. Tudo, para elas, é motivo de assombro. E acrescentou: “Com os adolescentes é diferente. Eles não têm olhos para as coisas.
Eles só têm olhos para eles mesmos…”. Eu já tinha percebido isso. Os adolescentes já aprenderam a triste lição que se ensina diariamente nas escolas. Aprender é chato. O mundo é chato. Os professores são chatos. Aprender, só sob ameaça de não passar no vestibular. Por isso quero ensinar as crianças. Ensiná-las para que elas se encantem com o mundo. Seus olhos são dotados daquela qualidade que, para os gregos, era o início do pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal.
Tudo é espantoso: um ovo, uma minhoca, um ninho de guaxinim, uma concha de caramujo, o voo dos urubus, o zinir das cigarras, o coaxar dos sapos, os pulos dos gafanhotos, uma pipa no céu, um pião na terra.
Dessas coisas, invisíveis aos eruditos olhos dos professores universitários (eles não podem ver, coitados. A especialização os tornou cegos como toupeiras. Só veem dentro do espaço escuro de suas tocas. E como veem bem!), nasce o espanto diante da vida; desse espanto, a curiosidade; da curiosidade, a “fuçação” (essa palavra não está no Aurélio!) chamada pesquisa; dessa “fuçação”, o conhecimento; e do conhecimento, a alegria!
Rubem Alves, no livro “Do universo à jabuticaba”. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.
Fonte: Revista Prosa ,Verso e Arte
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