(O Unotchit)
Observo com curiosidade o estranho hábito contemporâneo de colecionar
assinaturas alheias. Fosse eu um pouco mais malicioso do que sou,
imaginaria que quem pede um autógrafo está pensando em falsificar a
assinatura do sujeito incauto que sai por aí mostrando a todo mundo como
rubrica seus cheques.
Surgiram
desse ritual as famosas “noites de autógrafos” que todo escritor é
obrigado a cumprir para divulgar seus livros. Durante uma festa ou um
coquetel, o autor atende os leitores um por um, trocando algumas frases
cordiais, e escrevendo uma dedicatória cortês. Livro na mão, o leitor
vai para casa duplamente satisfeito: conseguiu um contato pessoal com o
autor que admira, e pode prová-lo, porque na folha de rosto do livro
está escrito: “Para o inteligente e talentoso Braulio Tavares, com o
abraço e a admiração de Machado de Assis”.
Surgiu agora uma invenção da canadense Margaret Atwood (autora de Madame Oráculo, O Assassino Cego,
etc.), uma engenhoca que permitirá a todo mundo dar autógrafos à
distância. É uma espécie de “notepad” que se conecta a uma caneta movida
por uma garra eletrônica. As palavras que são escritas na superfície do
notepad no terminal “A” são reproduzidas pela garra-caneta no terminal
“B”. Ambos, é claro, podem estar a milhares de quilômetros de
distância.
Para
reduzir a impessoalidade da ação, o sistema é conectado a um sistema de
webcams com áudio, que permite ao fã conversar com o autor durante o
breve encontro.
Atwood é uma autora bissexta de ficção científica (A História da Aia, Oryx e Crake), embora ela não goste do rótulo. Diz ela:
“Não
posso estar fisicamente em cinco países ao mesmo tempo, mas com este
sistema posso autografar em cinco países sem o desgaste físico das
viagens”.
Sábias
palavras de quem tem 66 anos! A autora teve a ideia do tele-autógrafo,
reuniu técnicos e criou uma firma para produzir a máquina, à qual
batizou como Unotchit (que se pronuncia “you not touch it”, “você não
toca nisto”).
Tudo
bem; mas é preciso lembrar que o autógrafo é uma pequena cerimônia no
altar do Ego. Não o Ego do artista famoso, mas o Ego do fã anônimo, que
usará o autógrafo para convencer a si mesmo e aos outros de que o
Artista Famoso o conhece: não está ali uma prova insofismável?
É
fácil esquecermos que Fulano de Tal já deu dezenas de milhares de
autógrafos a pessoas com as quais não se demorou mais do que trinta
segundos. Os trinta segundos que nos foram dedicados são inesquecíveis e
preciosos, temos a prova manuscrita do Contato, e isto nos basta para
ficarmos pensando pelo resto da vida que também somos importantes.
Nesta
nossa civilização do Ego, bastam alguns minutos passados ao lado de um
ídolo (e o nosso nome escrito em sua caligrafia com uma frase gentil)
para que possamos alimentar durante muitos anos a sensação de que nós
também existimos naquele mundo encantado que só podemos admirar à
distância.
Bráulio Tavares
Mundo fantasmo
Nenhum comentário:
Postar um comentário