sexta-feira, 25 de setembro de 2020

As pequenas doenças da eternidade


"Falava como se a obra mandasse nela. Margarida costurava, enquanto Júlio, o mais novo dos filhos a penteava com uma escova de madrepérola. Júlio era o seu amigo preferido. Uma vez e outra assisti àquela encenação e vi como, no final o meu amigo recolhia os cabelos tomados no chão para os erguer de encontro à janela. Cada cabelo brilhava como se fosse um fio de lã tricotando nuvens. Naquele momento Maralto espreitava pela janela, mas não eram nuvens que ele queria ver. Esperava pela chegada do marido. Sabia que ele a estava a trair com outra, algures num quarto da cidade. Margarida tinha os olhos em maré vaza. Mas fazia de conta de que não havia espera, de que não havia marido, de que não havia cidade. Era então que o seu menino a salvava. Penteava a mãe, dizia ele, para que ela nunca morresse.
(...)
Adoecemos porque foi essa a nossa escolha. No falso sofrimento da pequena doença esquecemos as verdadeiras e incuráveis dores com que nascemos e iremos morrer.
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E agora que os filhos todos já tinham saído de casa, restava-lhe Júlio com sua infatigável escova de madrepérola. A minha presença, dizia-me ela à despedida, ajudava-a a varrer a saudade desses ausentes. Até que um dia se descobriu que o Júlio sofria do coração. Uma válvula disseram. Eu não queria ouvir: doía-me saber que o Júlio estava doente. Havia um erro. O coração de Júlio era infinito.
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Até que a alma se tornou um peso. Incapaz de correr, Júlio abandonou o seu lugar como avançado de centro da nossa equipa. Restou-lhe o papel de árbitro.
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Um dia foi a vida quem assinalou falta contra Júlio Maralto. A minha mãe acordou-me cedo e levou-me pela estrada de asfalto que conduzia ao cemitério.
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As pessoas debruçavam-se sobre ela e dedicavam-lhe o impossível conforto de gestos e palavras. Maria Maralto permanecia alheia. Quando me aproximei, porém, ela segurou-me no braço e fixou-me longamente para murmurar: agora é que viver já não tem cura.
(...)
Agora, todas as tardes, vou visitar Margarida, mirrada dentro do vestido negro. Naquele corpo tão magro e escasso, não cabem nem pequenas nem grandes doenças. Já contei todos os seus ossos, anuncia como um relato dos seus afazeres diários. E conclui: os ossos que traz no corpo são os que bastam, uns para suster lembranças, outros para devolver à terra. Contempla os muros como se esperasse que eles florisseme ergue o pescoço para dizer que está pronta. Empunho a escova e penteio os seus cabelos cada dia mais brancos. A vizinha não demora a adormecer. E eu me retiro, pé ante pé, para não interromper as eternidades da vizinha Maria Maralto "

Mia Couto

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