quinta-feira, 12 de julho de 2018

Os roteiristas do destino

De vez em quando eu escapo de morrer. Às vezes o táxi em que volto para casa tira um fino num poste. Ou então eu consigo perceber a tempo que está faltando uma lasca na boca da garrafa de cerveja. Ou levo meus exames ao médico, ele lê de cima a baixo, boceja e diz que eu estou melhor do que ele. 
Sempre que isso acontece, penso à noite, no escuro, com a cabeça no travesseiro, que o meu destino (e o de todos) é decidido no Céu, num daqueles Céus de filme de Hollywood ou novela da Globo, com nuvens de algodão e divisórias de isopor. Anjos de terno preto e asas brancas, os Roteiristas, determinam as ações de cada ser humano, nesta superprodução com seis bilhões de figurantes.
Vou adormecendo, embalado por essa hipótese tranquilizadora. Não preciso me preocupar. Os roteiristas mudaram de idéia. Estava previsto que o táxi se amarfanhasse comigo dentro, ou que o caco de vidro me perfurasse os órgãos, ou que o doutor empalidecesse e dissesse: “Meu Deus! Você devia ter me procurado quando isso começou a lhe incomodar!” 
Mas vocês sabem como é reunião de roteiristas. Toda hora surge um problema. Quando chegamos ao capítulo 15.638, e o público já perdeu qualquer senso de orientação, um deles se levanta e aponta com o dedo um nome no mural e diz: “Esse cara aqui. Na verdade, ele não morre. Vamos precisar dele para algo muito importante, no capítulo...” 
Nesse momento acordo, banhado em suor frio. Que capítulo? E qual a coisa importante que preciso fazer? Não sei. A informação se dissipou quando acordei.
Seguem-se dias de angústia, porque começo a achar que só sou útil aos Roteiristas (e que eles só me manterão no enredo) na medida em que eu me dispuser a fazer o que eles planejam. Mas o que é?! 
Este é o mal dos roteiros cósmicos em 30-D. Numa novela comum, tudo é fácil. A gente escreve para o personagem pular no precipício e o ator pula, porque sabe que há colchões de espuma disfarçados, fora do enquadramento. Não há livre-arbítrio. 
Mas se estamos postulando um Game Multiplex como este aqui do planeta Terra, os Atores têm a liberdade de improvisar, só não podem é se afastar muito do roteiro, porque nesse caso os anjos de terno preto se impacientam (é personagem demais, e o Redator Final fica cobrando serviço), lá vai o táxi ao poste, e eles arranjam outro para fazer o que é para ser feito.
Eis o busílis – descobrir o que é para ser feito, descobrir qual a razão que os leva a me manterem aqui, quando já tiveram mil chances de se livrar de mim. 
Será que esperam que eu escreva um romance? Mãos à obra. Compor uma música que vai ser o sucesso da atriz principal no capítulo 18.356? Deixa comigo. Ser pai de uma criança que no capítulo 38.615 vai ganhar o primeiro Nobel brasileiro? Não há problema. 
E lá vou eu, marcando “x” em tudo quanto é quadrinho, apostando nas loterias de mim mesmo, para que meu personagem se justifique e se mantenha no ar por sécula-seculóro, amém.

Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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