domingo, 29 de julho de 2018

Hemingway e os sarrafos que o mar trazia ardendo na lareira

“Ela lembrava quase tanto um navio quanto uma casa. Colocada ali para  resistir às tempestades, incrustava-se na ilha como se fosse parte integrante dela; mas de todas as janelas descortinava-se o mar e era muito arejada, de  modo que não se sentia calor nem nas noites mais quentes. Pintada de branco para ficar bem fresca no verão, podia-se avistá-la de longe, na Corrente do  Golfo. Era o ponto culminante da ilha, com exceção da extensa plantação de  altos pés de casuarina, a primeira coisa que se enxergava ao se acercar da ilha  por via marítima. Logo depois da mancha escura das casuarinas acima da  linha do horizonte, via-se o vulto branco da casa. Aí então, à medida que se  chegava mais perto, a ilha emergia inteira, com os coqueirais, as cabanas de madeira, a faixa branca da praia, e o verde da Ilha Sul se estendendo ao fundo. Thomas Hudson nunca avistava aquela casa na ilha sem que ficasse tomado por uma sensação de felicidade. Sempre a imaginava exatamente como um  barco. No inverno, quando soprava o vento norte e esfriava de fato, ela era  quente e confortável porque possuía a única lareira na ilha. Uma vasta lareira aberta onde Thomas Hudson queimava sarrafos lançados à praia pelas ondas.  

Guardava-os numa pilha enorme, encostados à parede do lado sul da casa. Estavam esbranquiçados de sol, cobertos de areia trazida pelo vento, e  ele se afeiçoava tanto a vários pedaços que até sentia ódio de ter que queimá-los. Mas depois das grandes tempestades sempre surgiam outros na praia, e terminava achando divertido queimar mesmo os pedaços de que mais gostava. Sabia que o mar traria novos e nas noites frias sentava na ampla poltrona diante do fogo, lendo à luz do lampião pousado na grossa mesa de tábuas, interrompendo a leitura para escutar o noroeste soprando lá fora, o estrondo da rebentação, e contemplar os enormes sarrafos esbranquiçados a arder.  

Às vezes apagava o lampião e deitava em cima do tapete no chão, detendo-se a fitar as pontas coloridas que o sal marinho e a areia desenhavam nas chamas enquanto a lenha ardia. Deitado, seus olhos nivelavam com a altura da madeira que queimava, tornando nítida a linha de separação entre a chama e os sarrafos, o que o deixava ao mesmo tempo triste e alegre. Toda madeira que queimasse o afetava desse modo. Mas os sarrafos trazidos pelo mar a arder ali no fogo causavam-lhe uma sensação que não conseguia definir. Achou que talvez fosse erro queimá-los, uma vez que gostava tanto deles; mas não tinha remorsos por causa disso.  

Ao deitar-se no chão sentia-se protegido contra o vento, embora, na realidade, o vento açoitasse até os cantos inferiores da casa, a grama mais baixa da ilha, infiltrando-se pelas raízes da vegetação rasteira da praia, pelos carrapichos e pela própria areia. No chão, podia sentir a batida da rebentação tal como se lembrava de ter sentido o disparo de poderosos canhões quando se jogava por terra perto de uma peça de artilharia há muitos e muitos anos, quando ainda era menino.  

A lareira era uma coisa formidável; no inverno e durante todos os outros meses contemplava-a com carinho, imaginando como seria quando o inverno chegasse de novo. O inverno era a melhor de todas as estações na ilha, e aguardava-o com impaciência o resto do ano inteiro.”


HEMINGWAY, Ernest. As Ilhas da Corrente. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. P. 17-18. 
Tradução de Milton Persson.

Nenhum comentário: