A história dos garotos tailandeses de um time de futebol que
ficaram presos nas cavernas durante vários dias chamou a atenção do mundo
inteiro.
A gente não sabe o que admirar mais: se a serenidade e a
fibra dos garotos e do técnico, que aguentaram firme esse tempo todo, no escuro
e no frio: se a coragem e o esforço das dezenas de mergulhadores que se
revezaram nos túneis submersos (um deles acabou morrendo); se a solidariedade
do governo local e dos agricultores da região, que perderam suas plantações,
inundadas pelo esforço de retirar água da caverna, mas não se queixaram.
Como sempre tem alguém querendo punir alguém, muita gente
quis botar a culpa no técnico, que teria levado os garotos para uma “roubada”,
por imprudência.
Pelas matérias que li, o técnico e vários dos meninos já
tinham feito, sem sustos, essa mesma exploração das cavernas. É uma espécie de
rito de passagem para eles. A intenção era levar um dos meninos, que estava
aniversariando, para inscrever seu nome numa parede remota no fundo da caverna,
como outros já tinham feito.
É uma
bravata? É, sim. Corre-se um risco? Corre-se. Não acho que seja um risco
maior do que fumar cigarro e beber álcool – riscos que eu corro, sabendo o que
estou fazendo, sabendo que posso morrer por causa disso. Cada um escolhe os
perigos que quer enfrentar.
No Nordeste, para quem mora perto de açudes, existe um
desafio tradicional: mergulhar até o fundo do açude e emergir com a mão cheia
de barro – para provar que se tocou o fundo. É um risco? É uma bravata? Sem
dúvida. Garotos e garotas já morreram afogados por causa disso – ficaram
enredados em plantas, ou sei lá o quê.
Chegar na fronteira da morte é uma bravata que jovens do
mundo inteiro praticam, desde que o mundo é mundo. Pesando os dois lados da
coisa, minha constatação é de que poucos estavam tão bem preparados para isso
quanto os “Javalis Selvagens”, nome do time de futebol dos garotos.
É um rito de passagem.
Me veio à mente o belo livro de Alan Garner The Stone Book (1976). É a história de
uma menina cujo pai trabalha nas pedreiras, na região de Cheshire (Inglaterra).
Numa cena perto do fim do livro, o pai conduz à menina ao interior de uma
caverna e dá-lhe instruções sobre o que fazer, quando chegam a uma abertura
muito estreita.
Ali, o pai se detém, porque não pode passar; a menina
entra sozinha, fica de pé num espaço apertado, e ali encontra marcas feitas por
crianças de séculos atrás.
Ela entende que quando se tornar adulta não poderá entrar
mais ali, porque estará grande demais e não poderá passar pela abertura – como seu
pai não passou, e ele tinha entrado ali quando era menino. É um espaço
simbólico a que só se tem acesso na infância, e que se perde ao virar adulto.
Histórias assim têm um significado profundo, e não duvido
que na cultura dos garotos tailandeses esse tipo de coisa seja levada a sério.
Nós, que levamos a sério tantos rituais idiotas da vida
social urbana, que direito temos de achar que eles estão fazendo bobagem?
Cavernas, grutas e passagens subterrâneas têm um poder
simbólico muito grande na cultura dos povos que vivem na sua proximidade.
Perto de Campina Grande, milhares de pessoas se arrastam
todos os anos por baixo da Pedra de Santo Antonio, inclusive moças que tentam
com isso arranjar um casamento. Se arranjam ou não, não sei, mas qualquer
pessoa pode fazer o mesmo, e me lembro dos brilho nos olhos da minha mãe quando
voltava para Campina depois de praticar essa pequena façanha.
Não é por acaso que um dos primeiros contos publicados por
Guimarães Rosa, Makiné (1930)
transcorre na gruta desse nome, que fica nas proximidades de Cordisburgo, sua
terra natal.
No conto, um mago fenício tenta controlar os selvagens “peles
vermelhas” locais, entra em choque com eles e é forçado a se refugiar no
interior da gruta:
Numa cripta escura do algar, o mago procurou o orifício bem seu
conhecido, que descia alguns côvados como um poço, para mudar logo depois de
direção, escavando-se em comprido corredor horizontal. No fim dessa galeria
jaziam os diamantes de Summér, o “Sumé” dos vermelhos.
Gruta que ele já havia celebrado num dos poemas de seu
livro Magma (1936; publicado em
1997):
Bafio quaternário. O preto
da imensa noite, anterior ao mundo,
com pesadelos agachados
e pavores dormindo pelos cantos,
enrolados nas caudas de gelatina fria,
vem comprimir o peito e os olhos.
E ao acendermos as velas e as lanternas,
a treva se retrai, como um enorme corvo,
das paredes paleozóicas,
salitradas.
("Gruta de Maquiné")
Quem mora em região de cavernas é como quem mora em
região de rochedos, região de rios. Tem com essas coisas uma relação que por um
lado é simbólica, por outro lado anímica.
Muito mais perigo do que os garotos tailandeses correm os
turistas brancos sedentários que uma vez por ano resolvem saltar de “bungee jump”. (É um direito deles, também; e
quem sou eu para dizer que não façam.)
Ainda no capítulo dos romances, uma expressão que me veio
várias vezes à mente durante este episódio foi o título do belo romance juvenil
de Susan Cooper, o primeiro dos cinco que compõem a série “The Dark is Rising”:
Over Sea, Under Stone (1965).
“Acima do mar, por baixo da rocha”. É o ambiente
claustrofóbico das grutas à beira-mar, espaços às vezes ocos, às vezes
inundados, onde só se pode penetrar com segurança em certos períodos. No livro
de Susan Cooper, três garotos mergulham ali para descobrir uma espécie de Graal
ou objeto sagrado que lhes foi revelado num mapa.
Toda iniciação envolve um risco. O mergulhador que morreu
durante as tentativas de salvamento sabia o risco que estava correndo, e tenho
certeza de que não se arrependeria.
Talvez a pior coisa que tenha acontecido aos garotos dos “Javalis
Selvagens” tenha sido a fama repentina, a exposição à mídia, a badalação. Uma
coisa que me parece totalmente contrária ao espírito budista que eles cultivam.
Em toda iniciação se paga um preço, e torço para que esse
preço a ser pago pelos meninos não se revele mais alto do que eles poderão
pagar pelo resto da vida.
Bráulio Tavares
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