Você folheia um livro, uma revista, e de
repente, como se cruzasse uma esquina, um fato pelo qual não esperava
está à sua frente. Como a foto em que esbarrei ao virar uma página 7.
Ali
estava uma cena de museu absolutamente incomum. Diante de um auto
retrato de Rembrandt, moldura dourada sobre parede cinzenta, uma mulher
cujo rosto não se vê porque voltado para o quadro, olha. Não está de pé.
Está deitada em uma maca hospitalar conectada a aparelhos. Quatro
assistentes estão com ela. Todos olham o quadro, menos a jovem mulher
que controla os aparelhos.
O
fotógrafo é Roel Foppen, militar aposentado, acompanhante voluntário da
Stichting Ambulance Wens, uma associação holandesa cuja finalidade é a
realização de desejos de doentes em fase terminal. De ambulância, a
associação leva pessoas próximas à morte para rever algum país, cidade,
obra, parente ou amigo que lhe seja especialmente caro e cuja visão
queira ter consigo na última viagem.
“No
dia 3 de março – diz o autor da foto- levamos três doentes de
mobilidade reduzida ao Rijksmuseum . Eram 17 horas. Tínhamos o museu
somente para nós.” A luz que incidia sobre o quadro, iluminando o olhar
quase amoroso com que o velho pintor parecia dialogar com a mulher,
chamou sua atenção. Afastou-se e fotografou.
Nada
disse à mulher, uma senhora de 78 anos, portadora de esclerose lateral
amiotrófica. O rosto dela não aparece, a discrição é absoluta, e ele não
quis interromper o seu momento de contemplação. Mais tarde, postou a
foto nas redes sociais – é possível que você que agora me lê a tenha
visto – não para exibir sua foto, mas para chamar a atenção do mundo
para a atividade da associação.
Certamente chamou a minha. Parei como
todos os que estão na foto. Porém, não para olhar o ” Auto retrato com
dois círculos”, obra do final da vida de Rembrandt da qual todos nos
sentimos íntimos, e sim para permitir que a visão daquele gesto de amor
ao próximo e de busca da beleza afagasse minha alma diariamente
maltratada pelo noticiário.
A
associação de idéias recolheu na memória um filme visto no início da
década de 70, “Soylent Green”. Definido como ficção científica é, na
verdade, uma ficção profética que retrata Nova Iorque no ano de 2022,
com 40 milhões de habitantes. A ciência conseguiu vencer as doenças, mas
o calor é sufocante, a água é só para beber, no planeta poluído e super
povoado os recursos naturais se esgotaram, a população pobre suada e
suja se alimenta de tabletes fornecidos pela indústria Soylent. O último
lançamento de tabletes é verde.
Não
foi pelos tabletes que me lembrei do filme. Foi pela cena final, quando o
velho companheiro do detetive Thorn ( Charlton Heston) decide que
chegou a hora de morrer e se encaminha para a Casa, espaço destinado aos
que querem receber o fim através de um medicamento. Ali, deitado numa
maca diante de imensa tela, verá projetadas durante vinte minutos cenas
de como o planeta era antes, rico e verdejante, com seus campos e
bosques, seus rios claros, suas geleiras e desertos, seus imensos
oceanos. Acompanhando as cenas, ouve a Patética, de Tchaikovsky e a
Pastoral, de Beethoven. E morre levando consigo a harmonia da criação.
Não
foi só a personagem Sol, que levou atrás dos olhos essa visão. Seu
intérprete, o ator Edward G. Robinson estava doente de câncer, terminal.
A cena foi uma dupla despedida que fez chorar Charlton Heston. Edward
G. Robinson morreu 10 dias após o término das filmagens.
Marina Colasanti
Esta crônica encontra-se publicada no site da escritora Marina manda lembranças. Recomendamos conhecer o site, relicário de jóias de inestimável valor literário.
Esta crônica encontra-se publicada no site da escritora Marina manda lembranças. Recomendamos conhecer o site, relicário de jóias de inestimável valor literário.
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