Sala cirúrgica do Hospital
das Clínicas, em São Paulo
Boa notícia no mundo da língua brasileira: a expressão biônica "risco
de morte", que há cerca de 20 anos começou a se impor às cotoveladas no
discurso dos meios de comunicação, sofreu um violento revés. Talvez não
corra risco de vida, mas está no hospital.
Na última
quinta-feira (9), depois que publiquei aqui um texto sobre os
"podólatras da letra", a direção de jornalismo da TV Globo soltou uma
circular vetando em toda a rede o uso da locução, que chamou
acertadamente de "modismo".
Eu sei que isso não vai resolver os
problemas do Brasil. A notícia é boa para a cultura do país porque
representa uma vitória da língua natural, aquela que as pessoas de fato
falam, e uma derrota de certa mentalidade prescritiva que, mesmo bem intencionada, comete o pecado de inventar "erros" onde eles não existem.
Basta
pensar na reputação que o português tem para grande parte dos
estudantes e da população em geral –a de língua dificílima e cheia de
pegadinhas– para entender o potencial nocivo da caça ao equívoco
imaginário. "Seus tataravós falavam errado, seus bisavós e avós e pais
também, preste atenção!"
Por ser emblemática, a história de
"risco de morte" merece uma recapitulação. É preciso deixar claro que o
problema da expressão não é estar "errada". Seu problema é que, de uso
minoritário ate então, foi vendida a multidões de falantes ao preço da
criminalização de uma locução consagrada, familiar e tão popular quanto
elegante.
Foi em fins do século passado que estudiosos apegados
demais ao pé da letra transformaram a malhação de "risco de vida" –que
até Machado de Assis usou– em cavalo de batalha. O jornalismo
brasileiro, infelizmente, montou nele e saiu a galope.
A Globo
não inventou o modismo, embora possa ser considerada sua maior
propagadora. Introduzida na cultura da grande imprensa por consultores
de português, a ideia de que "risco de vida" era um contrassenso chegou a
ser acolhida também nesta Folha –que, no entanto, livrou-se dela faz
tempo.
"Ninguém corre o risco de viver", dizia-se. Era um
equívoco. A análise em que se baseava obscurecia algo compreendido até
então por todos os falantes, inclusive os analfabetos: que risco de vida
quer dizer risco para a vida, isto é, risco de perder a vida.
Enxergar
aí uma agressão à lógica requer um tipo bem carrancudo de literalismo. É
mais ou menos como dizer que o "quarto de visitas" deveria ser chamado
de "quarto para visitas", uma vez que elas nunca terão a posse do
cômodo.
A primeira voz que vi se levantar contra isso, no início
do século, foi a do linguista Sírio Possenti. No campo conservador, o
jornalista Marcos de Castro incluiu um verbete em reedição de seu livro
"A Imprensa e o Caos na Ortografia" para engrossar o coro. A resistência
a "risco de morte" foi uma obra coletiva.
Não que a locução
mereça o anátema que seus defensores tentaram impor a "risco de vida".
As duas são gramaticais e fazem sentido. Uma, preferida por gerações de
brasileiros, refere-se ao perigo que corre a vida; a outra fala do
perigo de que a morte vença. Dizem basicamente a mesma coisa.
Por
que, então, comemorar o declínio da expressão "risco de morte"? Porque
ela não soube brincar. A língua que as pessoas falam na vida real merece
respeito.
Sérgio Rodrigues
Folha de São Paulo online
(Disponível
em:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2017/03/1866873-por-que-devemos-comemorar-a-decadencia-da-expressao-risco-de-morte.shtml.
Acesso em: 25 março 2017.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário