sábado, 4 de março de 2017

A arte de errar

(ilustração: Giorgio de Chirico)

Às vezes um trecho de canção se gruda no ouvido da gente, num “loop” que ninguém desliga. Quando é de uma dessas músicas pavorosas que tocam no rádio, aí é dose. Mas às vezes a memória nos traz um pequeno fragmento recuperado da adolescência. 
Eu ando lembrando aquele forró antigo (de quem, meu Deus? Elino Julião? Messias Holanda? Trio Nordestino?), que diz: “Ela tem cheiro de fulô da fuloresta... É um afeto o olhar dessa mulher.” (Esta é a versão da letra que achei agora via Google; eu sempre cantava "é uma festa o olhar dessa mulher". E a canção é do mestre Abdias.)
É um desses casos em que se o cara obedecesse à gramática implodia o verso, não é mesmo? O aparente erro, a corrutela, a variante rústica, tudo isso exprime o sabor de uma palavra que brota espontaneamente num contexto estético onde mais do que a palavra pensada e certinha cabe a palavra dita do primeiro jeito que acode à mente.
O que é certo, o que é errado? Na língua não existem formas mais certas do que outras. Algumas formas de dizer são preferíveis por serem mais fiéis à origem etimológica, outras por serem mais maleáveis no contexto sintático, outras ainda por serem mais próximas às estruturas espontâneas da língua. 
Flor não é mais certo do que fulô, assim como vosmecê não é mais certo do que você: são, talvez, momentos diferentes de uma mesma palavra ao longo da História da Fala Brasileira. 
Cada palavra é na verdade um conjunto de variantes, que vão se superpondo umas às outras. Aceitamos a variante proposta por um grande autor; hesitamos quando ela é proposta por um indivíduo que provavelmente ignora a norma culta (é o caso das crianças e dos analfabetos), mesmo que vejamos nela um certo charme.
Que viva a lucidez poética; mas a poesia se alimenta, também, de palavras não-pensadas, frases intuitivas, improvisos sem propósito. 
O beatle Ringo Starr era especialista em frases que soavam (em inglês) meio desconjuntadas, meio faltando-alguma-coisa: por isso mesmo os outros as adoravam, e algumas acabaram virando títulos de canções (“A hard day´s night”, “Tomorrow never knows”). 
Alguns autores fizeram disto um recurso estético permanente, como é o caso de Guimarães Rosa, onde é difícil encontrar, principalmente em seus últimos livros, uma frase inteira onde não haja pelo menos uma distorção, uma palavra “mexida”, uma interferência no que seria o jeito certo de dizer.
“Já faz três noites que pro Norte relampeia”, cantava Gonzagão. Poderíamos tentar corrigir o erro aparente, dizendo: “Já faz três noites que o Norte relampagueia...” Valeria a pena? Duvido. 
Certas formas são mais espontâneas, e ai das concorrentes. Outras, pelo contrário, afirmam-se porque sua vontade de dizer algo é tão grande que rompe a casca da forma. Drummond começa seu poema humorístico “Ao Deus Kom Unik Assão” dizendo: “Eis-me prostrado a vossos peses, que sendo tantos todo plural é pouco.” Impossível não achar graça, impossível não ver no aparente erro a fagulha da criação verbal, que pede, para exprimir a primeira vez de uma ideia, a primeira vez de uma palavra. 


Bráulio Tavares 
Mundo Fantasmo


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