quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A crônica das fraldas

Terminei aquela ensolarada manhã com a alma leve e a impressão de que, além de praticar uma boa ação, ainda encontrara assunto para esta crônica bizarra
Ela estava sentada no degrau de uma loja fechada de Ipanema, com um menino no colo. Não tinha o estereótipo de uma pedinte, mas não sei por que, talvez pelo olhar, achei que estava precisando de alguma coisa, tanto que, ao sair da farmácia, resolvi oferecer-lhe o troco de minha compra.

Mas, temendo ofender seu amor próprio com o que poderia parecer esmola, disfarcei, já que era o Dia da Criança: “É pra comprar um brinquedinho pra ele”, disse, iniciando conversa. Ela morava em Jacarepaguá, tinha 36 anos e o filho, Rafael, 3. Perguntei se precisava de alguma coisa: “Só de fralda descartável pra ele”.

Voltei à farmácia e, quando expliquei o que se passava à balconista que me atendera, ela acabou me aconselhando a não fazer aquilo; a cena era comum ali: “Eles vendem pra comprar droga. Menino de 3 anos não usa mais fralda”. Decepcionado com a revelação, fugi pelo lado contrário em que se encontrava a mulher, não queria saber mais dela.

No caminho, porém, fui perseguido por uma estranha sensação de mesquinhez e covardia. Me perguntava: e se aquela jovem infeliz, que parecia tão sincera comigo e com um rosto tão sofrido, quisesse mesmo as fraldas não para alimentar um suposto vício e, sim para o Rafa (já estava íntimo do menino)?

Em casa, contei pra minha mulher como estava me sentindo culpado. O que me custava ter comprado as fraldas? A vontade era voltar. Mas desisti quando ela lembrou que já tinha ouvido falar nesse golpe de falsos mendigos agindo no bairro. Nesse momento, tirei da sacola o remédio que fora comprar e descobrimos o engano: em vez de arnica em pomada contra a dor muscular, eu comprara em spray, que não servia para massagem.

Tinha que trocar. Não seria um “sinal” para me livrar da culpa? Não acredito, mas de qualquer maneira voltei à farmácia pela terceira vez em menos de uma hora. A atendente já não aguentava mais aquele freguês recorrente. Pedi desculpas e expliquei que, apesar de sua advertência, eu resolvera levar as fraldas. “Tudo bem, apenas fiz a minha parte”, conformou-se.

Peguei então o pacote com as 18 peças descartáveis tamanho 3G e fui entregar a quem delas precisava, fazendo questão de lhe contar tudo o que ouvira. “É verdade”, ela me surpreendeu, “muita gente faz isso por aqui, mas eu nem posso usar droga, tenho pressão baixa”. E quanto às fraldas, ela abaixou o calção do menino e mostrou que ele usava uma.

Era exceção naquele mundo cão. Acreditar nisso me fez bem. Terminei aquela ensolarada manhã com a alma leve e a impressão de que, além de praticar uma boa ação, ainda encontrara assunto para esta crônica bizarra.

Zuenir Ventura é jornalista
Do blog do Noblat 
O Globo

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